Na sentença, “Este seu Guignard é falso ou verdadeiro?”, o ...
Guignard na parede
— Este seu Guignard é falso ou verdadeiro? — perguntoulhe o visitante, coçando o queixo, de um modo ainda mais suspeitoso do que a pergunta.
— Ora essa, por que duvida?
— Eu não duvido nada, só que existem por aí uns cinquenta quadros falsos de Guignard, e então...
— Então o quê?
— Esse também podia ser. Só isso.
— Pois não é, não senhor. Qualquer um vê logo que se trata de Guignard autêntico, Guignard da melhor época.
— Não ponho em dúvida sua palavra, Deus me livre. Mas nunca se sabe se um quadro é autêntico ou não. Nunca. Não há prova irrefutável.
— Mesmo que se tenha visto o pintor trabalhando nele?
— Em geral, o pintor não trabalha à vista dos outros. No máximo dá uma pincelada, um toque. Até os retratos, não sabia? São feitos em grande parte na ausência dos retratados. Todo artista tem um auxiliar, espécie de primo pobre, que imita à perfeição a maneira do mestre...
— Guignard tinha alunos; e daí? Vai me dizer que os alunos pintavam e ele assinava?
— O senhor é que parece estar insinuando isso. Eu digo apenas que assinatura pode ser autêntica num quadro falso. Veja Picasso. Picasso assina falsos Picassos por blague ou para ajudar pobres-diabos. Pode parecer maluquice, mas para mim o pintor é o primeiro falsificador de sua obra, ele se copia e manda os outros copiarem...
— Não diga uma besteira dessas.
— Vejo que não gostou. Natural, tem amor a seu Guignard, quer preservá-lo de suspeitas. Pois, meu caro, o pintor, quando famoso, não chega para as encomendas, e aí então é que assina apenas o que os outros pintam para ele. Como foi ele que mandou pintar, a falsificação é relativa, ou por outra, é endossada, fica sendo autoria. Pode se distinguir entre a falsificação original e a falsificação falsa mesmo, à revelia do autor.
— Nunca ouvi tanta bobagem na minha vida.
— O senhor acha que é bobagem? Bem, está no seu direito. Mas me diga só uma coisa: viu Guignard pintar este quadro?
— Não, mesmo porque quando comprei o quadro, ele já tinha morrido. Mas comprei de uma pessoa que o comprou de Guignard.
— Está vendo? É a tal coisa. O pintor morreu, não pode dar testemunho. A pessoa afirma uma coisa, o senhor acredita, em sua boa-fé; e assim por diante. Aí é que nunca mais se apura a verdade.
— Acho uma impertinência de sua parte...
— Não, mesmo porque quando comprei o quadro, ele já tinha morrido. Mas comprei de uma pessoa que o comprou de Guignard.
— Está vendo? É a tal coisa. O pintor morreu, não pode dar testemunho. A pessoa afirma uma coisa, o senhor acredita, em sua boa-fé; e assim por diante. Aí é que nunca mais se apura a verdade
— Acho uma impertinência de sua parte...
— Perdão. Eu seria incapaz de duvidar de sua palavra e de sua inteligência. Porque acredito nas duas é que estou lhe abrindo os olhos. Não ouso pretender o título de seu amigo, mas a minha lealdade...
— ...
— Porque leal eu sou, mesmo para os desconhecidos. Faço questão. Fomos apresentados há meia hora, na conversa calhou o senhor dizer que tinha um ótimo Guignard, eu fiquei curioso de ver, o senhor me trouxe aqui... Não foi?
— Foi.
— Pois então. Fiquei com medo do senhor ter um falso Guignard, e preveni. Não há razão para se queimar.
— Está bem.
— Talvez tenha feito mal em alertá-lo. O senhor vai ficar preocupado, cismado. Não desejo isso. Vamos fazer uma coisa? Para o senhor não se chatear, eu compro o seu quadro, mesmo tendo as maiores dúvidas sobre a autenticidade. Repare bem: a fluidez da pintura é demasiado fluida para ser original... Um mestre nunca vai ao extremo de sua potencialidade; deixa que os outros exacerbem sua maneira. Este Guignard é tão leve, tão aéreo, que só mesmo de alguém muito habilidoso, que procurasse ser mais Guignard do que o próprio Guignard... Não há dúvida, para mim não é Guignard. Quanto quer por isto?
— Quero que o senhor vá para o inferno, sim?
22/06/1966
ANDRADE, Carlos Drummond de. 70 Historinhas. São Paulo: Companhia
das Letras, 2016.