No excerto “[...] vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acab...
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Ano: 2024
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
Prefeitura de Pitangueiras - SP
Prova:
Instituto Consulplan - 2024 - Prefeitura de Pitangueiras - SP - Telefonista |
Q2371968
Português
Texto associado
A última crônica
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto ao balcão. Na realidade estou adiando o
momento de escrever. A perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito mais um ano nesta busca do
pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso conteúdo
humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida. Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do
acidental, quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num acidente doméstico, torno-me simples
espectador e perco a noção do essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café, enquanto o verso do
poeta se repete na lembrança: “assim eu quereria o meu último poema”. Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um
último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma crônica.
Ao fundo do botequim um casal de pretos acaba de sentar-se, numa das últimas mesas de mármore ao longo da parede de
espelhos. A compostura da humildade, na contenção de gestos e palavras, deixa-se acrescentar pela presença de uma negrinha de
seus três anos, laço na cabeça, toda arrumadinha no vestido pobre, que se instalou também à mesa: mal ousa balançar as perninhas
curtas ou correr os olhos grandes de curiosidade ao redor. Três seres esquivos que compõem em torno à mesa a instituição tradicional
da família, célula da sociedade. Vejo, porém, que se preparam para algo mais que matar a fome.
Passo a observá-los. O pai, depois de contar o dinheiro que discretamente retirou do bolso, aborda o garçom, inclinando-se para
trás na cadeira, e aponta no balcão um pedaço de bolo sob a redoma. A mãe limita-se a ficar olhando imóvel, vagamente ansiosa,
como se aguardasse a aprovação do garçom. Este ouve, concentrado, o pedido do homem e depois se afasta para atendê-lo. A mulher
suspira, olhando para os lados, a reassegurar-se da naturalidade de sua presença ali. A meu lado o garçom encaminha a ordem do
freguês. O homem atrás do balcão apanha a porção do bolo com a mão, larga-o no pratinho – um bolo simples, amarelo-escuro,
apenas uma pequena fatia triangular.
A negrinha, contida na sua expectativa, olha a garrafa de Coca-Cola e o pratinho que o garçom deixou à sua frente. Por
que não começa a comer? Vejo que os três, pai, mãe e filha, obedecem em torno à mesa um discreto ritual. A mãe remexe na
bolsa de plástico preto e brilhante, retira qualquer coisa. O pai se mune de uma caixa de fósforos, e espera. A filha aguarda
também, atenta como um animalzinho. Ninguém mais os observa além de mim.
São três velinhas brancas, minúsculas, que a mãe espeta caprichosamente na fatia do bolo. E enquanto ela serve a Coca- Cola, o
pai risca o fósforo e acende as velas. Como a um gesto ensaiado, a menininha repousa o queixo no mármore e sopra com força,
apagando as chamas. Imediatamente põe-se a bater palmas, muito compenetrada, cantando num balbucio, a que os pais se juntam,
discretos: “Parabéns pra você, parabéns pra você...” Depois a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra
finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher está olhando para ela com ternura – ajeita-lhe a fitinha
no cabelo crespo, limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo botequim, satisfeito, como a se convencer
intimamente do sucesso da celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram, ele se perturba, constrangido
– vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.
Assim eu quereria minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso.
(SABINO, Fernando. A companheira de viagem, Editora do Autor. Rio de Janeiro, 1965, pág. 174.)
No excerto “[...] vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso.” (5º§), o
termo sublinhado expressa ideia de: