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Q649136 Português

O empregado tem carro e anda de avião. E eu estudei pra quê?

Matheus Pichonelli


O condômino é, antes de tudo, um especialista no tempo. Quando se encontra com seus pares, desanda a falar do calor, da seca, da chuva, do ano que passou voando e da semana que parece não ter fim. À primeira vista, é um sujeito civilizado e cordato em sua batalha contra os segundos insuportáveis de uma viagem sem assunto no elevador. Mas tente levantar qualquer questão que não seja a temperatura e você entende o que moveu todas as guerras de todas as sociedades em todos os períodos históricos. Experimente. Reúna dois ou mais condôminos diante de uma mesma questão e faça o teste. Pode ser sobre um vazamento. Uma goteira. Uma reforma inesperada. Uma festa. E sua reunião de condomínio será a prova de que a humanidade não deu certo.

Dia desses, um amigo voltou desolado de uma reunião do gênero e resolveu desabafar no Facebook: “Ontem, na assembleia de condomínio, tinha gente 'revoltada' porque a lavadeira comprou um carro. ‘Ganha muito’ e ‘pra quê eu fiz faculdade’ foram alguns dos comentários. Um dos condôminos queria proibir que ela estacionasse o carro dentro do prédio, mesmo informado que a funcionária paga aluguel da vaga a um dos proprietários”.

Sem que se perceba, reuniões como esta dizem mais sobre nossa tragédia humana do que se imagina. A do Brasil é enraizada, incolor e ofuscada por um senso comum segundo o qual tudo o que acontece de ruim no mundo está em Brasília, em seus políticos, em seus acordos e seus arranjos. Sentados neste discurso, de que a fonte do mal é sempre a figura distante, quase desmaterializada, reproduzimos uma indigência humana e moral da qual fazemos parte e nem nos damos conta. (...)

Por trás desse discurso está uma lógica perversa de dominação. Uma lógica que permite colocar os trabalhadores braçais em seu devido lugar. Por aqui, não nos satisfazemos em contratar serviços que não queremos fazer, como lavar, passar, enxugar o chão, lavar a privada, pintar as unhas ou trocar a fralda e dar banho em nossos filhos: aproveitamos até a última ponta o gosto de dizer “estou te pagando e enquanto estou pagando eu mando e você obedece”. Para que chamar a atenção do garçom com discrição se eu posso fazer um escarcéu se pedi batata-fria e ele me entregou mandioca? Ao lembrá-lo de que é ele quem serve, me lembro, e lembro a todos, que estudei e trabalhei para sentar em uma mesa de restaurante e, portanto, MEREÇO ser servido. Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições. 

Por isso o discurso ouvido por meu amigo em seu condomínio é ainda uma praga: a praga da ignorância instruída. Por isso as pessoas se incomodam quando a lavadeira, ou o porteiro, ou o garçom, “invade” espaços antes cativos. Como uma vaga na garagem de prédio. Ou a universidade. Ou os aeroportos. (...)

Esses exemplos mostram que, por aqui, pobre pode até ocupar espaços cativos da elite (não sem nossos protestos), mas nosso diploma e nosso senso de distinção nos autorizam a galhofa: “lembre-se, você não é um de nós”. Triste que este discurso tenha sido absorvido por quem deveria ter como missão a detonação, pela base e pela educação, dos resquícios de uma tragédia histórica construída com o caldo da ignorância, do privilégio e da exclusão.


Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-empregadaja-tem-carro-e-eu-estudei-pra-que-5156.html  



Para o autor:
Alternativas

Gabarito comentado

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Interpretação do texto: O texto apresenta uma crítica à forma como as pessoas percebem a ascensão social de trabalhadores braçais, como a lavadeira que comprou um carro. O autor discute a lógica de dominação e preconceito enraizada na sociedade, onde a educação e a posição social são usadas para justificar a hierarquia e a exclusão. A questão a ser respondida envolve identificar a alternativa que melhor resume essa crítica.

Alternativa correta: C - A situação apresentada na rede social é fruto da necessidade de domínio das pessoas sobre as outras. Esta alternativa é a mais adequada porque reflete diretamente a crítica do autor sobre como a dominância social se manifesta em situações cotidianas. O autor enfatiza como as pessoas se incomodam com a presença de trabalhadores que "invadem" espaços considerados de elite, revelando uma necessidade de controle e hierarquização na sociedade.

Justificativas para as alternativas incorretas:

A - Os trabalhadores braçais são explorados e por isso devem ocupar o mesmo lugar dos seus superiores. Embora a exploração dos trabalhadores seja mencionada, a alternativa sugere uma solução que não é apresentada no texto. O foco do autor não está na ocupação de lugares, mas na dinâmica de dominação.

B - A política brasileira é desigual e, portanto, segregadora, esse é o problema a ser discutido pela sociedade. Essa alternativa aborda a desigualdade política, mas o texto concentra-se mais nas relações sociais cotidianas do que em uma análise política ampla. A crítica é sobre interações sociais, e não diretamente sobre a política.

D - O fato de a empregada do condomínio ter um carro é sintomático da falta de organização financeira dos seus patrões. Essa interpretação desvia o foco do texto, que não atribui a questão financeira dos patrões como um problema central. O autor se preocupa mais com a percepção social em relação a esses trabalhadores.

E - A sociedade perdeu a noção das hierarquias sociais e se defende apenas em falsos discursos que escamoteiam as verdades. Embora a alternativa mencione uma crítica à hierarquia, ela não aborda diretamente a questão da dominação que permeia as interações sociais, que é o ponto central do texto. O autor discute mais sobre a lógica de controle do que sobre uma suposta perda de noção das hierarquias.

Conclusão: A alternativa C é a que melhor representa a crítica do autor em relação à dinâmica de poder nas relações sociais cotidianas. Identificar a essência do texto é crucial para responder questões de interpretação corretamente.

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Comentários

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Resposta Letra C

"...Não é só uma prestação de serviço: é um teatro sobre posições de domínio. Pobre o país cujo diploma serve, na maioria dos casos, para corroborar estas posições. "

C

A situação apresentada na rede social é fruto da necessidade de domínio das pessoas sobre as outras.

GABARITO: C

Veja que na fala do condômino, a empregada não deveria ter carro e viajar de avião, pois ela é "só" uma empregada. Percebe-se a necessidade de domínio das pessoas sobre as outras.

GCM Canindé de São Francisco

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