O título da crônica dialoga com a frase “Meu reino por um c...
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Ano: 2022
Banca:
IBFC
Órgão:
DETRAN-DF
Prova:
IBFC - 2022 - DETRAN-DF - Técnico em Atividades de Trânsito |
Q1996375
Português
Texto associado
Texto I
Meu reino por um pente
(Paulo Mendes Campos)
Filhos – diz o poeta – melhor não tê-los. Já o
Professor Anibal Machado me confiou gravemente que
a vida pode ter muito sofrimento, o mundo pode não ter
explicação alguma, mas, filhos, era melhor tê-los.
A conclusão parece simples, mas não era;
Anibal tinha ido às raízes da vida, e de lá arrancara a
certeza imperativa de que a procriação é uma verdade
animal, uma coisa que não se discute, fora do alcance
do radar filosófico. “Eu não sei por que, Paulo, mas
fazer filhos é o que há de mais importante.”
Engraçado é que, depois dessa conversa, fui
descobrindo devagar a melancólica impostura
daquelas palavras corrosivas do final de Memórias
Póstumas1
: “não transmiti a nenhuma criatura o legado
da nossa miséria”.
Filhos, melhor tê-los, aliás, o mesmo poeta
corrige antiteticamente o pessimismo daquele verso,
quando pergunta: mas, se não os temos, como sabêlo? Resumindo: filhos, melhor não tê-los, mas é de todo
indispensável tê-los para sabê-lo; logo, melhor tê-los.
Você vai se rir de mim ao saber que comecei a
crônica desse jeito depois de procurar em vão meu
bloco de papel. Pois se ria a valer: o desaparecimento
de certos objetos tem o dom de conclamar, por um
rápido edital, todas as brigadas neuróticas alojadas nas
províncias de meu corpo.
Sobretudo instrumentos de trabalho. Vai-se-me
por água a baixo o comedimento quando não acho
minha caneta, meu lápis-tinta, meu papel, minha cola...
Quando isso acontece (sempre) até taquicardia
costumo ter; vem-me a tentação de demitir-me do
emprego, de ir para uma praia deserta, de voltar para
Minas Gerais, renunciar...
Ridículo? Sim, ridículo, mas nada posso fazer.
Creio que seria capaz (talvez seja presunção) de
aguentar com relativa indiferença uma hecatombe2 que
destruísse de vez todos os meus pertences. O que não
suporto é a repetição indefinida do desaparecimento
desses objetos sem nenhum valor, mas sem os quais,
a gente não pode seguir adiante, tem de parar, tem de
resolver primeiro. [...]
1 Refere-se ao romance Memórias Póstumas de Brás Cubas, publicado
em 1881.
2 desastre, catástrofe
O título da crônica dialoga com a frase “Meu
reino por um cavalo”, atribuída a Ricardo III, em
uma obra produzida por William Shakespeare.
Embora o texto não esteja completo, com base
nessa informação, pode-se inferir que o
enunciador: