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Q2504251 Português
A inquietude imobiliária: sobre a cidade à venda e o desejo de se mudar



Pode ser uma impressão equivocada, pode ser uma atração exagerada do meu olhar. Mas sinto que em minha cidade nunca houve tantas casas à venda, tantos apartamentos desejosos de um novo proprietário, tantos terrenos baldios a exibir suas figueiras para seduzir algum comprador. Por toda parte vejo placas, em cada bairro por que passo, tudo parece posto à venda em simultâneo, em ação coordenada. Como se todos os habitantes de uma cidade decidissem no mesmo instante se mudar, num livro nunca escrito por Saramago. Ou então como numa brincadeira infantil, em que uma voz gritasse "já" e todos fossem obrigados a largar seus lares e encontrar um novo lugar.

Insisto, pode ser que nada disso se passe, pode ser que eu esteja projetando nos outros apenas o que inunda a minha intimidade — não passo de um cronista, afinal. Já há algum tempo me vejo tomado por algo que acabei chamando de inquietude imobiliária. Uma insatisfação difusa e injusta com os espaços onde minha vida se dá, com o quarto colorido e modesto onde brinco com as minhas filhas, com o escritório em que troco turnos com a minha companheira. Sem que nada me incomode de verdade, sem que me sejam de fato necessários uns metros a mais, me vejo a sonhar com outra casa, informe ainda, inexata, onírica. Há anos tenho o mesmo sonho recorrente: estou percorrendo algum cômodo ultraconhecido da minha própria casa e me deparo com uma porta misteriosa, uma janela, um alçapão. Abro e descubro o que sempre esteve lá: o espaço que me faltava, um lugar para a escrivaninha própria, e para as vastas estantes em que eu poderia enfim ordenar os livros que vão se espalhando pelo chão. É um sonho vívido: a cada vez acordo largo e aliviado, e levo alguns segundos para voltar à estreiteza da realidade. Trata-se da expressão inconsciente da inquietude imobiliária, é o que agora me vejo a interpretar.

[...]

Volto a pensar na imensidade de placas de vende-se que proliferam pela cidade, cada uma exposta ali, talvez, por uma pessoa que deseja se mudar. Que aspecto da vida urbana ou social tem provocado tamanho desejo de transformação? O que significa que tantos se vejam tomados no mesmo momento por essa inquietude imobiliária, isto é, existencial? Por que a um só tempo tantos de nós estaremos querendo nos tornar outros?

Sobre as crises de seus concidadãos não convém a um cronista especular muito, nesses gestos imprudentes sempre lhe cabe algum pudor. Mas sobre mim posso dizer que já me vejo mais sossegado em minhas insatisfações. 



(Disponível em: https://www.uol.com.br/ecoa/colunas/julian-fuks/2024/02/24. Acesso em: 27/02/2024.) 
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