A palavra que, no texto, pode ser substituída por enraizado/...
Reencarnação
1 Em sua última vida (ao menos das que tivemos notícia), Peter Hulme era um simples funcionário
2 de bingo em Birmingham, Inglaterra. No entanto, ele vivia às voltas com um sonho recorrente e dramático:
3 nele, soldados que pareciam vindos do passado atacavam um castelo sempre inacessível. Hulme não
4 nutria maior interesse por história e jurava não ter ideia da origem de suas visões. Em busca de uma
5 resposta, nos anos 90, submeteu-se a sessões de hipnose. O resultado foi inusitado: concluiu que também
6 tinha sido John Raphael, soldado escocês servindo a certo capitão Leverett na Escócia do século 17.
7 Parecia uma fantasia, mesmo porque inexistiam registros históricos de uma batalha na região e
8 nas circunstâncias descritas por Hulme. Investigando por conta própria, ele e seu irmão Bob encontraram
9 indícios da existência do castelo e, empolgados, resolveram viajar à Escócia em busca de provas. Contra
10 todas as expectativas, recuperaram resquícios de batalha no local apontado por Hulme – e, mergulhando
11 em documentos antiquíssimos, acharam documentos que comprovam a existência de um capitão Leverett
12 e do próprio John Raphael. Com base nesses indícios, Peter Hulme afirmou até o fim da vida que suas
13 memórias eram genuínas e ele era, de fato, a reencarnação de um soldado escocês. O caso de Hulme não
14 está acima de dúvidas: historiadores apontam inconsistências e contradições nas memórias do suposto
15 reencarnado. Mas o relato ilustra uma situação que ainda intriga a ciência: pessoas que juram recordar
16 experiências de vidas passadas, em detalhes às vezes desconcertantes para os cientistas.
17 A ideia de uma consciência que sobrevive à morte e reencarna em novos corpos é quase tão antiga
18 quanto a fé em divindades e surgiu de forma independente em inúmeras culturas ao redor do planeta. De
19 todos os cantos do globo, encontrou na Ásia o terreno mais fértil. A ideia está tão arraigada nas crenças
20 hinduístas e budistas que, em lugares como Índia e Sri Lanka, a reencarnação é vista como algo quase
21 natural. Não é à toa que surgem de lá muito dos casos considerados mais sólidos pelos pesquisadores do
22 tema – como o de Swarnlata Mishra, que desde os 3 anos recordava com riqueza de detalhes a vida de
23 outra pessoa, chamada Biya e morta quase uma década antes.
24 A naturalidade com que Swarnlata tratava os integrantes de sua “outra” família, ao ponto de
25 mencionar apelidos íntimos de gente que não conhecia pessoalmente, fez com que o caso virasse um
26 clássico e deixa pesquisadores coçando a cabeça até hoje. Mesmo no mundo ocidental, uma boa parcela
27 da população acredita em reencarnações, um interesse que aumentou em alguns países após o surgimento
28 do espiritismo na França do século 19. Na Europa Ocidental, dados de 2006 apontam que 22% pensam
29 que a reencarnação é uma realidade, enquanto nos EUA pesquisas falam em 20 a 25% de crença em vidas
30 passadas. Nas cidades do Ocidente, em especial no Brasil, a doutrina espírita tem grande penetração, e
31 manifestações religiosas recentes, como a cientologia, também levam as vidas passadas como parte de
32 suas crenças.
33 A postura da ciência diante disso tudo é de ceticismo. A maioria dos cientistas trata os relatos de
34 vidas passadas como frivolidades, frutos de autoindução ou fraudes. Além disso, não existe nenhum indício
35 científico de que a “alma” exista ou de que ela possa sobreviver à morte do corpo (ela existiria de que forma
36 entre uma encarnação e outra?). Mas é claro que alguns pesquisadores pensam diferente. Um dos mais
37 destacados foi o psiquiatra Ian Stevenson, que dedicou mais de 40 anos ao estudo de quase 3 mil relatos
38 de crianças ao redor do mundo. De acordo com Stevenson, a maioria das recordações infantis sobre vidas
39 passadas envolve mortes violentas, com relatos iniciando entre 2 a 4 anos e quase sempre desaparecendo
40 antes da adolescência. Ele também estudou sinais de nascença e tumores, dizendo que podiam relevar
41 ferimentos sofridos em vidas anteriores. Em um estudo de 1992, Stevenson cita 49 casos onde foram
42 localizados documentos médicos de pessoas que as crianças diziam ter sido em vidas anteriores. De
43 acordo com o pesquisador, a correspondência entre ferimentos mortais e sinais físicos nos supostos
44 reencarnados seria no mínimo satisfatória em 43 desses casos, 88% do total. No entanto, o próprio
45 Stevenson admitia uma grave lacuna: seus estudos não mostram como seria possível uma consciência
46 sobreviver à morte física e ingressar no corpo de outra pessoa. Seus livros são alvos de muitas críticas,
47 que vão desde análise tendenciosa dos dados até uso de fontes não confiáveis, que já acreditavam em
48 reencarnação antes dos supostos casos na família. Ou seja, não existiria evidência de reencarnação além
49 de depoimentos dos próprios reencarnados ou de indícios que, mesmo intrigantes, podem ser meras
50 coincidências.
51 Mas alguns aspectos de supostas vidas passadas ainda são desconcertantes para a ciência. É o
52 caso, por exemplo, da xenoglossia, uma capacidade súbita que algumas pessoas manifestam de falar, com
53 diferentes graus de fluência, línguas que deveriam desconhecer. Um dos casos mais marcantes é o de Iris
54 Farczády, uma húngara de 16 anos que, no ano de 1933, passou a agir como uma espanhola de 41 anos
55 chamada Lucía, morta anos antes. A suposta reencarnada esqueceu o húngaro natal e passou a falar
56 espanhol fluente, nunca mais recuperando sua personalidade anterior. O caso está registrado no livro
57 Paranormal Experience and Survival of Death (“Experiência paranormal e sobrevivência da morte”, sem
58 tradução para o português), de Carl Becker, professor de ética médica da Universidade de Kyoto. Para a
59 maioria dos cientistas, a história de Iris (ou Lucía) não passa de mais um caso de almanaque, mas há quem
60 acredite que a comprovação científica da xenoglossia seria a prova definitiva de que a reencarnação é uma
61 realidade. É viver (uma ou mais vezes) para crer.
NATUSCH, Igor. Reencarnação. Dossiê Superinteressante - Sobrenatural: o lado oculto da realidade.
Edição 383-A, dez. 2017.
A palavra que, no texto, pode ser substituída por enraizado/a (s) sem prejuízo para o significado é