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Q3215765 Português

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Aconteceu em Natal


Sanderson Negreiros


    O trânsito ontem à tarde na Rua João Pessoa estava uma delícia. Servido com caviar, batatinhas e molho pardo. Uma delícia de trânsito.

    Às 16 horas em ponto, dei entrada com meu carango varonil na referida artéria. Por que as ruas chamavam-se antigamente de artérias? É porque nelas corria sangue, disse-me Vetusto, repórter policial, do tempo em que, ao morrer uma criança, escrevia-se: “Ontem, alou-se aos céus, a interessante garota”.

    Cheguei no começo da João Pessoa e pensei com os três botões da minha camisa: vou provar a mim mesmo que sou edição modesta de Fittipaldi e atravessarei estas ruas em menos de meia hora. Não vos conto minha decepção: às 17h30 é que conseguia chegar no chamado Grande Ponto. E vos informo de minha epopeia, minha odisseia, minha ilíada.

    Para passar ao largo do Centro Cearense, gastei 20 minutos. Havia carros por cima das calçadas, carros por cima dos outros e, num realismo fantástico, um Volks que tinha subido numa mangueira parnasiana.

    Perguntareis: como isso é possível? Na Rua João Pessoa, depois das 4 da tarde, tudo é possível. Não sei ainda se tudo é permitido.

    Pensei em Jean-Luc Godard, para filmar aquele apocalipse subdesenvolvido. Imprensara meu carango de tal maneira que fui jogado fora dele. Foi preciso o guarda para o caos, isto é, o trânsito; e dar vez aos meus direitos institucionais, dizendo-me: “O senhor pode voltar para o seu carro e assumir a direção”. Gostei e voltei.

    Dei continuação ao fluxograma, ao esquema, ao organograma, ao... qualquer coisa de fila de carros que ia em demandada do Grande Ponto. De repente, aquele susto, inevitável: um corcel amarelo-hepatite ia por cima da parede. Como uma lagartixa profissional.

    Depois de uma hora intensa de empurra-empurra, vi em minha frente uma camioneta parada, no meio da rua, que não era mais rua, mas um ringue. Fechei os olhos, e um sujeito gritou de trás: “Passe por cima. Passe por cima”.

    Alguém botou um tobogã invertido e apenas liguei a primeira. Logo senti que havia ultrapassado mais um obstáculo olímpico.

    A caminhada continuou. Quando atingi a possibilidade de passar em frente à APERN, uma mulher disse para mim: “Nunca me viu?”. Respondi: “Nunca. Never. A senhora pertence ao planeta Terra?”.

    E segui em frente. Ia me esquecendo: nesse tempo todo, choveu cinco vezes e fez verão outras tantas. Ouvimos trovões pianíssimos, em fita gravada; e trovões reais, em alta fidelidade. Houve tempestade em curto circuito e tempestades que só conhecemos em filmes coloridos da Metro, como o que contava a queda de Roma.

    O Grande Ponto era um mar de cabeças unânimes (perdoem a imagem). Um mar compacto; não havia brecha sequer para que alguém espirrasse sem atingir a moral do outro. Hippies, defensores da contracultura, ex-hippies, artistas pops, pintores ops, singulares personalidades que não pagam ainda o INPS.

    E, diante de tal quadro, vi o impossível acontecer, pelo menos em Natal: um motorista impaciente levantou-se do seu carro e caminhou por cima das cabeças como pudesse se repetir a imagem do Evangelho: de Cristo andando sobre as águas.


  • NEGREIROS, Sanderson. Aconteceu em Natal. In: SOBRAL, Gustavo; MACEDO, Helton Rubiano de (Orgs.). Cinco cronistas da cidade. Natal: EDUFRN, 2017. p. 145-148. Disponível em: https://repositorio.ufrn.br/bitstream/123456789/23773/1/Cinco%20cronistas%20da%20cidade.pdf. Acesso em: 26 set. 2022.
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