Assinale a alternativa em que ocorre um dígrafo consonantal ...
TEXTO II
[4 de novembro de 1855]
Desejava dirigir uma pergunta aos meus leitores.
Mas uma pergunta é uma coisa que não se pode fazer sem um ponto de interrogação.
Ora, eu tenho uma birra muito séria a esta figurinha de ortografia, a esta espécie de corcundinha que parece estar sempre chasqueando e zombando da gente.
Com efeito, o que é um ponto de interrogação?
Se fizerdes esta pergunta a um gramático, ele vos atordoará os ouvidos durante uma hora com uma dissertação de arrepiar os cabelos.
Entretanto, não há coisa mais simples de definir do que um ponto de interrogação; basta olhar-lhe para a cara.
Vede: ?
É um pequeno anzol.
Ora, para que serve o anzol?
Para pescar.
Portanto, bem definido, o ponto de interrogação é uma parte da oração que serve para pescar.
Exemplo:
1º Quereis pescar um segredo que o vosso amigo vos oculta, e que desejais saber; deitais o anzol disfarçadamente com a ponta da língua:
– Meu amigo, será verdade o que me disseram, que andas apaixonado?
2º Quereis pescar na algibeira de algum sujeito uma centena de mil réis; preparais o cordel e lançais o anzol de repente:
– O Sr. pode emprestar-me uns duzentos mil réis aí?
3º Quereis pescar algum peixe ou peixãozinho: requebrais os olhos, adoçai a voz, e, por fim, deitais o anzol:
– Uma só palavra: tu me amas?
É preciso, porém, que se advirta numa coisa. O ponto de interrogação é um anzol, e por conseguinte serve para pescar; mas tudo depende da isca que se lhe deita.
Nenhum pescador atira à água o seu anzol sem isca; ninguém portanto diz pura e simplesmente:
– Empresta-me trezentos mil réis?
Não; é preciso que o anzol leve isca e que esta isca seja daquelas que o peixe que se quer pescar goste de engolir.
Alguns pescadores costumam deitar um pouco de mel, e outros seguem o sistema dos índios que metiam dentro d’água certa erva que embebedava os peixes.
Assim, ou dizem:
– Meu amigo, o senhor, que é o pai dos pobres, (isca) empresta-me trezentos mil réis? (anzol).
Ou então empregam o segundo meio:
– Será possível que o benfeitor da humanidade, o homem que todos apregoam como a generosidade personificada, que o cidadão mais popular e mais estimado desta terra, que o negociante que revolve todos os dias um aluvião de bilhetes do banco, me recuse a miserável quantia de trezentos mil réis?
No meio do discurso, já o homem está tonto de tanto elogio, de maneira que, quando o outro lhe lança o anzol, é, com certeza, de trazer o peixe.
Ainda tinha muita coisa a dizer sobre esta arte de pescar na sociedade, arte que tem chegado a um aperfeiçoamento miraculoso. Fica para outra ocasião.
Por ora basta que saibam os meus leitores que o ponto de interrogação é um verdadeiro anzol.
O caniço desta espécie de anzol é a língua, e o fio ou cordel a palavra; fio elástico como não há outro no mundo. […]
Adaptado de: ALENCAR, José de. Ao correr da pena. Edição preparada
por João Roberto Faria. São Paulo: Martins Fontes, 2004.