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O texto “Gauchês, mineirês, carioquês, cearês e outras maravilhas
nacionais” a seguir refere-se à questão.
Gauchês, mineirês, carioquês, cearês e outras maravilhas nacionais
Ana Elisa Ribeiro
Outro dia me disseram que eu falo diferente. É que eu estava entre
gaúchos e paulistas, então fiquei sendo a diferentona da rodada. Mas
aos meus ouvidos, eles pareciam todos diferentes em seus falares. É
que tudo depende do referencial, não é isso? Não matei essa aula de
Física.
Sempre amei sotaques. Qualquer um e todos. Sempre me intrigou a
valoração social que damos a eles, assim sem pensar. É um sentir, um
repetir, uma questão social e econômica ali misturada, produzindo
às vezes um preconceito, às vezes um deslumbramento meio bobo.
Ficava pau da vida quando um colega ou uma amiga passavam duas
semanas de férias no Rio de Janeiro e voltavam falando carioquês
advanced. “Precisa disso?”, pensava eu irritadinha. E às vezes falavam
e explicavam: ah, é que tenho facilidade de pegar sotaque. Hum, sei.
Lembro-me bem da rodinha de discussões de amigos: o sotaque mais
bonito é o gaúcho. E depois aqueles clichês engraçados: o português
mais perfeito é o de São Luís. Aí alguém corrigia: não, é o de Belém do
Pará. Ah, meus sais. O mineiro é o que não é: engolindo as metades
das palavras. Um amigo paulista, recentemente, contou da história do
gringo que lhe fez a pergunta do século: o que é isso que vocês dizem
quando querem passar? Nem sei reproduzir aqui a dúvida do fulano. É
que a gente aprende desde cedo, na escolinha, a pedir “licença”, não é
mesmo? Mas, na real, o que a gente diz uns aos outros, bem sussurrado
e surrado, é um “ss ss” ou no máximo um “cenççç”, que nada tem a
ver com as aulinhas de português que o gringo teve na vida, lá no país dele. Como faz? Vai passando assim, meio empurradinho, e dizendo
“cenççç”.
Sotaque é lindo. Poeticamente, fico pensando em como é bonito trazer
sua terra no seu falar. Não pode haver coisa mais visceral, pode? Abro
a boca e em segundos, juro, alguém manda esta: cê é mineira, né?
Nem tento negar. Melhor: nem quero. Oh, Minas Gerais. Comendo
sílabas, engolindo os pronomes reflexivos, emendando palavras umas
nas outras, fazendo cordões de lexemas, anulando consoantes. Até a
piadinha do cara falando com o mineiro me faz rir:
—- Diz que mineiro só fala vogal, né?
—- Uai, é? ó!
Eu de cá, reconheço paulistano de longe, carioca a quilômetros,
gaúcho até debaixo d'água e baiano até fingindo de morto. O sotaque
do interior de São Paulo se parece com o do interior de Minas, então
pode ser que eu confunda um pouco. Mas, fico ali naquela área entre o
norte de São Paulo, o sul e o triângulo mineiros e Goiás. Tenho grandes
chances de acertar. Como Minas são muitas, é preciso considerar as
fatias de variados sotaques, na parecença com baianos, paulistas
interioranos, cariocas forçados e o tipiquíssimo sotaque da região
metropolitana da capital, Belzonte. Bom, isso é lenda, falamos mesmo
é Beagá.
O Nordeste é que sofre com a ignorância do resto do país. Até eu, que
não sou de nenhum de seus maravilhosos estados, me arrepio quando
ouço aquela do “sotaque nordestino”. Coisa de quem nunca andou
por aquelas bandas imensas. Geralmente, o Sicrano que diz isso quer
se referir ao sotaque da Bahia (que também não é único nem uno). Não
sei assim certinho discernir, mas bem que identifico um pernambucano,
uma paraibana, um cearense, em suas pujanças vocálicas, em seus usos
do imperativo (coisa que a um mineiro parece o fim do mundo!) e em
sua majestosa pronúncia consonantal. Na segunda sílaba de “bom dia”
uma plateia inteira de paraibanos e paraibanas já sabe que venho de
longe, geralmente das plagas de baixo. Meu “d” africado (djia) soa
bem diferente lá, onde eles dizem “d” como “d” mesmo. Foi minha
tristeza em duas gravações diferentes de uma canção pelo músico
Lenine, recifense de nascença. Na primeira ele cantava “no toque da platinela” com esse “t” todo “t”; na segunda, anos depois, ele cantou
“platchinela”, como nós aqui falamos. Entristeci, embora a canção
tivesse continuado bonita.
Então, sotaque não é coisa simples. Sotaque é pronúncia, é melodia,
é ginga, é palavra menos e mais usada, é como dizer nos mínimos
detalhes, é cantando, é modo verbal, é como soa cada vogal ou
consoante, é um jeito, é uma origem, é como aprendemos a falar com
as nossas mães, em nossos lugares de convivência. Depois pode ser
que mude, se misture, se altere, se alterne. Pode ser que até suma, seja
substituído por outro. Sotaque é aquilo que volta quando a gente faz
uma visitinha. É aquilo que a gente evita quando tem trauma. Conheço
gente que mora fora do local natal faz tempo e tem um sotaque
misturado. A Renata e o Nathan, por exemplo, que são cearenses, já
misturam um pouco das bolas. Em Minas, são logo reconhecidos como
estrangeiros; mas quando voltam a Fortaleza, são logo acusados de se
terem “amineirado”. Nem cá, nem lá, todos, tudo. Um emaranhado no
outro. Sotaque é o chão na voz, o gesto no jeito. Sotaque, estrangeiro
ou dentro do Brasil, é lindo. Se não for, pode saber que é valoração de
outra ordem.
Fonte: RIBEIRO, Ana Elisa. Nossa Língua e outras encrencas. Crônicas. V1. Editora Parábola. 2023.
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