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Ano: 2023
Banca:
FUMARC
Órgão:
Prefeitura de São João del Rei - MG
Prova:
FUMARC - 2023 - Prefeitura de São João del Rei - MG - Auxiliar Administrativo |
Q2159163
Português
Texto associado
DRIBLO MINHAS LIMITAÇÕES
Nathalia Santos, 30, como é ser cega e atuar como assistente de
direção da novela Todas as Flores, da Globo
SEMPRE FUI FASCINADA pela televisão, mas não me via trabalhando na área.
Aconteceu por acaso. Dez anos atrás, Regina Casé cutucou no Twitter: “Quem
quiser ir ao Esquenta, comenta aqui”. Eu comentei, acabei indo ao programa e fiz
um tour pelos bastidores. Eles tinham uma biblioteca itinerante com um livro de
Jorge Amado em braile, e Regina perguntou se alguém na plateia conseguiria fazer
a leitura. Me candidatei. Ela aí quis saber como havia aprendido braile e respondi
que era cega, o que ela ainda não tinha notado. “Como assim, cega?”, disse com
aquela espontaneidade dela. Ficamos amigas e ali começou minha história no
mundo do entretenimento. Virei pesquisadora do Esquenta, depois engatei em programas jornalísticos, até chegar à função atual – assistente de direção de uma
novela, a primeira com minha deficiência na história da emissora.
Driblo obstáculos o tempo todo. O mundo ainda não está preparado para
quem não enxerga. Meu trabalho só é possível graças ao time que me ajuda em
vários terrenos, a começar pelas adaptações físicas que fizeram para que eu
possa desempenhar minhas tarefas. O pessoal da cenografia, por exemplo, criou plantas dos cenários em alto relevo, para me familiarizar com o ambiente onde
atuo. A equipe de figurino produziu pranchas com detalhadas descrições, e a turma
de sistemas de tecnologia personalizou programas para uso do leitor de tela. Instalaram também um piso tátil no caminho dos estúdios e sinalização sonora nas
roletas. Isso é só para viabilizar o que vem em seguida. Antes de entrar no set,
converso em profundidade com o diretor artístico, Carlos Araújo. E, nas gravações,
diretor e atores vão me informando sobre a posição de cada um e várias outras
minúcias, desde a cor do tapete e a localização precisa da cadeira onde um personagem vai se sentar até o lugar onde a câmera se encontra naquele exato momento.
Ao entrar para a equipe de Todas as Flores, fiz questão de me mexer para
que essa minha experiência se estendesse a outros setores da empresa. Tenho
muito orgulho de dizer que, hoje, a gente já conta com consultores, preparador de
elenco, operador de áudio, atores, uma turma de pessoas com deficiência que
trabalha duro e muito bem. Sei que não seria escalada para uma novela de prestígio apenas por ser cega. A qualidade do meu trabalho é determinante. Sou a
única cega da minha família, nasci assim, com uma distrofia chamada retinose
pigmentar. Cresci em uma favela da Zona Norte carioca e tive uma infância boa.
Claro que era café com leite em algumas brincadeiras, mas nunca deixei de participar, ainda que tenha ouvido frases que me feriram ao longo do percurso. Não
esqueço quando um professor me disse, no ensino médio, que não dava aula a
alunos com deficiência. Ninguém faz ideia de quanto machuca.
Sou mãe de um menino de 2 anos e estou grávida de novo, de vinte semanas. Imagine que, nos dias de hoje, ainda olham para mim e acham que sou
incapaz de exercer a maternidade. Pensam que meu marido é pai e mãe, apenas
porque não enxergo. Sofro com isso. Adoro ser mãe. Na primeira ultrassonografia
desta segunda gestação, cheguei ao exame uma hora antes. Como estava demorando, procurei saber a razão do atraso e falei que era deficiente. Tinha direito à
prioridade por lei. A atendente chamou meu marido, sem se dirigir a mim, e disse
que lá todo mundo era preferencial. Quando vamos ao restaurante, perguntam a
ele o que eu quero, e não a mim. Mal sabem que meu ouvido é apuradíssimo e
que meus olhos são minhas mãos. Ainda falta à sociedade compreensão sobre
diferenças. Abertura à diversidade é chamar para o baile, mas a verdadeira inclusão é deixar escolher a música.
(Fonte: Revista Veja, Editora Abril, edição 2823, ano 56, nº 1, 11 jan. 2023, p. 69) – Adaptado
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