Pela passagem “Sendo autor do furto, eu assumira a obrigaçã...
Furto em Flor
Furtei uma flor daquele jardim. O porteiro do edifício cochilava e eu furtei a flor.
Trouxe-a para casa e coloquei-a no copo com água. Logo senti que ela não estava feliz. O copo destina-se a beber, e flor não é para ser bebida.
Passei-a para o vaso, e notei que ela me agradecia, revelando melhor sua delicada composição. Quantas novidades há numa flor, se a contemplarmos bem. Sendo autor do furto, eu assumira a obrigação de conservá-la. Renovei a água do vaso, mas a flor empalidecia. Temi por sua vida. Não adiantava restituí-la ao jardim. Nem apelar para o médico de flores. Eu a furtara, eu a via morrer.
Já murcha, e com a cor particular da morte, peguei-a docemente e fui depositá-la no jardim onde desabrochara. O porteiro estava atento e repreendeu-me:
— Que ideia a sua vir jogar lixo de sua casa neste jardim!
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Contos Plausíveis.
In: ANDRADE, Carlos Drummond de. Prosa e Poesia, 8. ed.
Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1992. p. 1266.