Leia o seguinte fragmento: “Há poucos meses, ao aceno de uma...
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Ano: 2023
Banca:
Prefeitura de Bauru - SP
Órgão:
Prefeitura de Bauru - SP
Prova:
Prefeitura de Bauru - SP - 2023 - Prefeitura de Bauru - SP - Almoxarife |
Q2206682
Português
Texto associado
Texto: A traição das elegantes
“As fotos estão sensacionais, mas algumas das elegantes não souberam posar” –
confessou Ibrahim Sued a respeito da reportagem em cores sobre as “Mais Elegantes de
1967” publicada em Manchete.
A verdade é mais grave, e todos a sentem: as “Mais Elegantes” estão às vezes
francamente ridículas, às vezes com um ar de boboca e jeca, às vezes simplesmente
banais. A culpa não será de Ibrahim, nem do fotógrafo, nem da revista, nem das
senhoras; o que aconteceu é misterioso, desagradável, mas completamente
indisfarçável: alguém ou, digamos, Algo, Algo com maiúscula, fez uma brincadeira de
mau gosto, ou talvez, o que é pior, uma coisa séria e não uma brincadeira; como se
fossem as três palavras de advertência que certa mão traçou na parede do salão de
festim de Baltazar; apenas não escreveu nas paredes, mas nas próprias figuras humanas,
em seus olhos e semblantes, em suas mãos e seus corpos: “Deus contou o dia de teus
reinos e lhes marcou o fim; pesado foste na balança, e te faltava peso; dividido será teu
reino”.
Oh, não, eu não quero ser o profeta Daniel da Rua do Riachuelo; mas aconteceu alguma
coisa, e essas damas que eram para ser como símbolos supremos de elegância e
distinção, mitos e sonhos da plebe, Algo as carimbou na testa com o “Manê, Tekel,
Farés” da vulgaridade pomposa e fora de tempo. Oh, digamos que escapou apenas uma
e que há uma outra que não está assim tão mal. Mas as doze restantes (pois desta vez são catorze) que aura envenenada lhes tirou o encanto, e as deixou ali tão enfeitadas e
tão banais, tão pateticamente sem graça, expostas naquelas páginas coloridas como
risíveis manequins em uma vitrina de subúrbio?
Que aconteceu? Ninguém pode duvidar da elegância dessas damas, mesmo porque
muitas não fazem outra coisa a não ser isto: ser elegantes. Elas são parte do patrimônio
emocional e estético da Nação, são respeitadas, admiradas, invejadas, adoradas desde os
tempos de “Sombra”; vivem em nichos de altares invisíveis, movem-se em passarelas
de supremo prestigio mundano – e subitamente, oh! ai! ui! um misterioso Satanás as
precipita no inferno imóvel da paspalhice e do tédio, e as prende ali, com seus sorrisos
parados, seus olhos fixos a fitar o nada, estupidamente o nada – quase todas, meu Deus,
tão “Shangai”, tão “Shangai” que nos inspiram uma certa vergonha – o Itamarati devia
proibir a exportação desse número da revista para que não se riam demasiado de nós lá
fora!
Não sou místico; custa-me acreditar que algum Espírito Vingador tenha feito esse
milagre contrário. A culpa será talvez da “Revolução”, que tornou os ricos tão seguros
de si mesmos, tão insensatos e vitoriosos e ostentadores e fátuos que suas mulheres
perderam o desconfiômetro, e elas envolvem os corpos em qualquer pano berrante que
melífluos costureiros desenham e dizem – “a moda é isto” – e se postam ali, diante da
população cada vez mais pobre, neste país em que mínguam o pão e o remédio, e se
suprimem as liberdades – coloridas e funéreas, ajaezadas, e ocas, vazias e duras, sem
espírito e sem graça nenhuma.
Há poucos meses, ao aceno de uma revista americana, disputaram-se algumas delas a
honra de serem escolhidas, como mocinhas de subúrbio querendo ser “misses”, e no fim
apareceram numas fotos de publicidade comercial, prosaicamente usadas como joguetes
de gringos espertos. Desta vez é pior: não anunciaram nada a não ser a inanidade de si
mesmas tragicamente despojadas de seus feitiços.
Direi que a derrota das “Mais Elegantes” não importa… Importa! As moças pobres e
remediadas, a normalista, a filha do coronel do Exército que mora no Grajaú, a
funcionária da coletoria estadual de Miracema, a noiva do eletricista – todas aprenderam
a se mirar nessas deusas, a suspirar invejando-as, mas admirando-as; era o charme
dessas senhoras, suas festas, suas viagens, suas legendas douradas de luxo que
romantizavam a riqueza e o desnível social; eram aves de luxo que enobreciam com sua
graça a injustiça fundamental da sociedade burguesa.
Elas tinham o dever de continuar maravilhosas, imarcescíveis, magníficas. É possível
que pessoalmente assim continuem; mas houve aquele momento em que um vento
escarninho as desfigurou em plebéias enfeitadas, em caricaturas de si mesmas,
espaventosas e frias.
Quero frisar que dessas senhoras são poucas as que conheço pessoalmente, e lhes dedico
a maior admiração e o mais cuidadoso respeito. Não há, neste caso, nenhuma
implicação pessoal. Estou apenas ecoando um sentimento coletivo de pena e desgosto,
de embaraço e desilusão: nossas deusas apareceram de súbito a uma luz galhofeira,
ingrata e cruel; sentimo-nos traídos, desapontados, constrangidos, desamparados e sem
fé.
É duro confessar isto, mas é preciso forrar o coração de dureza, porque não sabemos se
tudo isso é o fim de uma era ou o começo de uma nova era mais desolada e difícil de
suportar.
Rubem Braga
Leia o seguinte fragmento: “Há poucos meses, ao aceno de uma revista americana,
disputaram-se algumas delas a honra de serem escolhidas, como mocinhas de subúrbio
querendo ser “misses”, e no fim apareceram numas fotos de publicidade comercial,
prosaicamente usadas como joguetes de gringos espertos.” A CORRETA a utilização
da pontuação aspas (“) justifica-se, quando se: