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Ano: 2024
Banca:
IF-TO
Órgão:
IF-TO
Provas:
IF-TO - 2024 - IF-TO - Assistente em Administração
|
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico de Laboratório - Área Ciências da Natureza |
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico de Laboratório - Área Física |
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico de Laboratório - Área Informática |
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico de Laboratório - Área Processos Industriais |
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico em Enfermagem |
IF-TO - 2024 - IF-TO - Técnico de Tecnologia da Informação |
Q3060713
Não definido
Texto associado
Doida pra escrever
Tem dia que eu acordo doida pra escrever. Não
serve mais nada. Tem alguma coisa incomodando
demais, dando engulhos ou fazendo cócegas. Às
vezes é só um prazo mesmo, vencido, de
preferência. Outras vezes, não. É assim a sensação
que deve ter um vulcão ou então uma bomba.
Vamos humanizar as coisas, minha gente. É a
sensação que deve ter o nosso corpo, imagine aí
em que circunstâncias mais variadas.
Mas já ouvi dizer de gente que nunca sente isso.
Por outro lado, ouvi falar de médico que prescreve
escrita pra curar doideira ou algum mal da cabeça.
Talvez cure também o coração e outras vísceras.
Quantas vezes senti os pulmões mais capazes
depois de um belo poema. Pode nem ter sido assim
tão belo, vá lá, mas foi eficaz pra dores diversas.
Em relação a essa turma que não precisa da escrita
pra nada só sinto duas coisas: ou inveja ou dó. Isso,
dó. Desculpem aí minha intolerância (Neste mundo,
é preciso ter cuidado com isso, senão dá processo).
Inveja quando penso que alguém pode conseguir
viver agarradinho com seus quiprocós todos, no
maior love, sem precisar tirá-los a fórceps, com uma
caneta ou um teclado desbotado. Quem me dera
essa convivência toda. Mas tudo bem. Pode ser que
a pessoa tenha outros expedientes, tipo jogar bola
com os amigos, beber bastante, correr (já vi gente
se curar assim), cantar, ah, cantar a beleza de ser…
isso. Mas não precisar escrever é um mistério pra
mim.
O outro sentimento é mais delicado. É dó, é pena,
é um negócio complicado. A gente, cá do alto de nossa implicância, fica pensando “coitado desse
pessoal”. Mas é que quem escreve se sente dono
de um garimpo inteiro. Uma espécie de poder. Está
na moda aí, aliás, uma palavra esquisita, traduzida
e mal paga, que é “empoderamento”. É mais ou
menos quando a gente aprende uma coisa que nos
faz ficar mais potente, mais podendo, com uma
espécie de “cinto de utilidades” que pode ser usado
quando a gente quiser mudar algo. E aí já li
bastante falarem de empoderamento em relação à
leitura e à escrita. E me senti mais super-heroína do
que todas: a She-Ha, a Mulher Maravilha, a… bem,
são quantas mesmo?
Escrever é um ódio. Mas, depois que acontece, é
uma mansidão geral, até a próxima escala. Só que
tem dia que eu acordo — eu e um monte de gente
que fez esta descoberta — doida pra escrever. Não
me vem nem a ideia do café da manhã. É que tem
bastante gente que precisa tomar café primeiro.
Mas eu sou uma mineira estranha: não curto nem
café, nem tropeiro, nem praia. Mas aí eu corro pro
computador e piro geral. Vai que dá certo?
Costuma.
A escrita é uma mistura inexplicável de força,
memória, conexões, leituras, falatórios, horas de
filmes bons e ruins, uma vida inteira de ações e
reações, atenção, desatenção, amor e desamor,
ímpetos, convicções, perdões, convenções, aulas
de tudo quanto há, escola, muita escola, contenção,
habilidade, um tico de tendências sadomasô,
exibicionismo, em algum grau, experiência em
qualquer medida, mas, fundamentalmente,
desobediência. A escrita nem te suga nem nada.
Você acorda doidão, corre pra máquina que for
(pode ser lápis, pois ela não é muito específica),
escreve, escreve, escreve, sente que secou,
murchou ou brochou, e continua o dia. Não desgasta, sabe? E enche, enche tudo de novo, que
nem caixa d’água (quer dizer… aí depende…).
Hoje eu acordei doida pra escrever. Note-se que
nem tinha muito o que dizer. Isso também acontece.
No entanto, não é bem um problema quando isso
rola. Tanta gente não tem nada a dizer! Ora, bolas.
Nem é preciso ter um ostentável conteúdo para
escrever. Milhares e milhares de estudantes fazem
isso, todos os anos, quando escrevem algumas
sofridas (e sofríveis) linhas sobre o que não sabem.
Já imaginou? Ter de escrever o que nunca foi
pensado antes? É a tarefa mais ingrata que há.
Digo sempre isso aos alunos que passam ali pelo
meu quadrado: sua tarefa é a pior que há, meu
caro. Depois desta, qualquer coisa funciona.
Imagine o comando: Escreva aí, nesta sala bege ou
verde-hospital, sem livros nem nada o que consultar, bem rapidamente, sob o olhar lancinante deste
fiscal mal pago, sobre um tema que você conhecerá
neste instante. OK. Está dada a largada. Se isso for
possível, o resto será festa.
Não. Escritor doido pra escrever tem tempo, tem
paixão, tem uns dias, uns meses, uns anos, uns
livros e muita gente com quem conversar. Muitas
vezes, escrever sucede a pesquisa. Pesquisa
mesmo, com roteiros, leituras, entrevistas,
consultas. Quem é doido por escrever costuma ter
uma sala, um quarto, uma estante, uma prateleira,
um computador, o que seja… mas cheios de coisas
pra ler, pra olhar, pra visitar, pra levar debaixo do
braço. Pensa, pensa, daí vem um ímpeto. A gente
fica fogoso, um dia. Não pode nem ver uma folha
de papel, uma tela em branco, que o fogo acende.
Mas vá lá. É preciso saber ficar doido pra escrever.
Ligar a ignição. Tá tudo calmo e quieto, vontade
alguma, só pensando no mato pra capinar ou na
graxa do portão, mas chega uma demanda de escrever. Quem não entende do riscado pensa que
é assim, ó: “Senta e escreve, bora lá”. E a gente faz.
Aprende a riscar a faca no chão até dar faísca.
Pedra com pedra. Fósforo. Lente no sol. Queima
até o que não tem. Doidos pra escrever são
perigosos. Acordei doida pra escrever. E nem era
só um prazo expirado. Era uma energia
transbordando aqui e ali. Calibrada? Níveis
normais? Vamos agora ao dia, pra ter mais o que
escrever, nas próximas linhas.
RIBEIRO, Ana Elisa. Doida pra escrever. In: RIBEIRO,
Ana Elisa. Doida pra escrever. Belo Horizonte:
Moinhos, 2021. p. 10-12. Disponível em:
https://rubem.wordpress.com/2023/03/08/doida-praescrever-ana-elisa-ribeiro/.
No trecho “Mas já ouvi dizer de gente que nunca
sente isso”, a oração “que nunca sente isso” exerce
qual função sintática em relação à palavra “gente”?