São manifestações em que o autor retrata sua opinião sobre o...
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Ano: 2023
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
CREFITO-4° Região (MG)
Prova:
Instituto Consulplan - 2023 - CREFITO-4° Região (MG) - Auxiliar Administrativo |
Q2309101
Português
Texto associado
A lixeira
Um dia, quando lhe perguntarem onde é que nasceu, a moça poderá responder, sorrindo: “na lixeira”. Pois realmente foi
ali que a jogaram, entre cascas de banana e borra de café, para que não vivesse; e foi dali que a retiraram, viva, para que desse
testemunho: até numa lixeira a vida pode começar.
O suposto nascimento anterior, num quarto, não vale para essa menina da rua Pedro América; ele se consumou na clandestinidade, a contragosto da mãe, talvez sem que o pai tivesse notícia, e mesmo sem que a mãe tivesse notícia do pai. Não era desejado, não
veio precedido de amor, mas de vergonha, medo, angústia, recriminação. Quem nasce sob tais condições negativas é como se não
nascesse, e a lixeira foi o instrumento providencial que ocorreu à mãe dessa menina errada, para anular, em escala individual, o efeito
da explosão demográfica. Enquanto não se decide a construção de crematórios para os que acabam regularmente, aí está, para os que
começam irregularmente, o incinerador do lixo doméstico. Nem seria preciso queimar a menina, com os demais detritos da casa. A
morte viria logo – necessária, oportuna, benfazeja.
Mas, naquele dia, a lixeira reagiu de forma imprevista, abstendo-se de cumprir a missão que já tantas mães solteiras, desesperadas ou não, lhe confiaram. Ficou surda aos argumentos sociais, morais e econômicos que demonstram a inconveniência de salvar-se
uma vida de origem equívoca e de custeio incerto. Guardou a menina como lixeira pode guardar, sem qualquer cuidado higiênico ou
resquício de conforto, mas guardou-a. Não lhe abafou o chorinho com o desmoronamento de um pacote de restos de cozinha, ou a
queda de uma lata vazia de pessegada sobre a cabeça. Na verdade, estimulou-a a chorar e bradar, dando-lhe ar pútrido e temperatura
de fornalha, para que melhor protestasse e atraísse, pelo sofrimento revoltado, a atenção do faxineiro.
E chegou o faxineiro e tirou daquelas entranhas estranhas a recém-nascida, como o obstetra faz o parto. Estava nascendo,
na porcaria, uma criança; e outro menino não nasceu, faz muito tempo, num cocho de comida de animais, no estábulo, entre
o farelo e o milho? A lixeira pode fazer as vezes de maternidade, berçário moderno para a vida que quer manifestar-se de
qualquer modo e não encontra outra saída. O obscuro humanitarismo, a piedade e a simpatia dessa lixeira, não salvaram, criaram a
vida. Foi lá que a criança verdadeiramente nasceu, quando os seres humanos, a ordem econômica e os últimos preconceitos
lhe negaram ou lhe impediram a existência.
A menina, mais tarde, poderá dizer com alegria reconhecida: “devo a vida a uma lixeira, foi nela que vim ao mundo”. E nós
também devemos alguma coisa a essa lixeira: a lição de respeito à vida.
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Caminhos de João Brandão. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1970. p. 97-98.)
São manifestações em que o autor retrata sua opinião sobre o fato no texto, EXCETO: