No Texto 6, a última frase do último parágrafo: “Por vezes v...
TEXTO 6
Would you mind if? [Você se incomodaria se?]
“Você se incomodaria se eu recuasse o encosto da minha poltrona?”, pergunta um passageiro japonês, sentado ____ minha frente, logo após ____ descolagem. O voo era de Tóquio para Pequim. O sotaque carregado truncou ____ mensagem. Fiz cara de incompreensão. Ele repetiu. Agora com pausas e articulando melhor.
Não havia mais dúvida. O jovem japonês queria mesmo saber quanto recuar o assento da poltrona me molestaria. E permaneceu virado para ____. Esperando minha reação. Condicionou sua manobra ___ minha resposta. Só recuaria se eu ____ garantisse que tava de boa. Inquiria se o deslocamento pretendido, bem como ____ ocupação de espaço decorrente, não determinaria em mim algum tipo de tristeza ou queda de potência.
Meio no reflexo balbuciei um “that’s ok”. [Tudo bem...]
“Are you sure?”, insistiu. [Você tem certeza?]
“Sure”. [Claro]
Sorriu e virou-se. Angulou ligeiramente o encosto. Menos do que poderia.
Em poucos segundos, tinha vivido experiência de grande valor. Sou daqueles que se encantam mais por pessoas e suas atitudes do que por outras atrações do mundo. Adepto de um turismo de convivência. Ali, no interior daquela aeronave, alguém tinha considerado meus afetos na hora de agir. Inquiriu sobre minhas alegrias e tristezas para colocá-las em posição de força – perante o próprio conforto – na sua equação deliberativa.
Não se contentou com o sentido mais imediato da resposta. Duvidou da sinceridade. Aquele “that’s ok” foi significado segundo o complexo Japanese way of meaning [o jeito japonês de significar as coisas]. E traduzido por “vai ficar mais apertado do que já está”. E a vida durante o voo pior do que já seria se você não reclinasse”. Por isso recuou só um tiquinho. Para não me ofender com sua incredulidade. E assegurar o conforto de que eu falsamente abdicara.
Experiência de grande valor, sim senhor. Também pelo aprendizado, que poderá se traduzir em práticas futuras. Diferentes e melhores. Em convivência aperfeiçoada. Do ontem para o amanhã.
Anos de vida viajante, palestrando sobre ética cada dia num canto de meu país-continente. Avião todo dia. Milhagens a mil. Deixando-me cair nos assentos marcados e recuando encostos com a rudeza de quem percebe o mundo com princípio e fim em si mesmo, no próprio prazer, conforto e ganho.
Com a alimentação exagerada de todos os dias, excessos estocados em gordura abdominal, instalar-me no 2C, deixando a gravidade fazer seu papel, reclinar a poltrona com a violência que a massa corporal permite, abrir o cinto, dar às células de gordura um lugar no mundo, onde possam ocupar posição sem constrangimentos, é procedimento automático. Um hábito aeronáutico.
Quanto ao ocupante do 3C… bem, esse nunca foi levado em conta. Após a aterrissagem, na hora de recuperar a bagagem nos compartimentos superiores, quem sabe um olhar de relance. De indiferença.
Aquele passageiro japonês, nihonjin como eles dizem, tinha me ensinado coisa preciosa. O que minha mãe, dona Nilza, chamaria de “bons modos”. Um jeito melhor de se portar. De agir. De interagir. De conviver. De viver com o outro. Segue minha mãe: “As outras pessoas estarão sempre por perto. A vida é com elas. Não tem felicidade sem elas. Tratar mal os outros machuca a alma”. E concluía profetizando: “O que você não aprender aqui em casa vai acabar aprendendo na rua”.
O tom de ameaça indicava que dona Nilza não se referia ao gentil oriental e seus sorrisos. Mas a profecia materna, ali na aeronave, mais uma vez se convertera em corpo, em matéria, em energia, em afeto, em sabedoria. Afinal, a minha presença fora considerada relevante por alguém que, embora não me conhecendo, condicionou sua vida daquele instante à minha. E,
ao fazê-lo, perdeu pleno controle sobre todo o seu devir imediato. Ficou, por decisão sua, na minha mão.
Daquele dia em adiante, nos últimos dois anos, nunca mais reclinei o encosto de meu assento sem consulta prévia ao ocupante de trás. Alguns aproveitaram para conversar sobre qualquer coisa. Outros me ignoraram. Mas houve quem tenha tomado minha iniciativa por zombaria, chacota, tiração de sarro. Ou até uma afronta.
Como toda mensagem, a ação em shinsetsu [cultura japonesa da gentileza] é enunciada e recebida. Nada garante que o receptor destinatário de nossa ação a interprete a partir das mesmas premissas que usamos para deliberar. Por vezes vale o dito popular: cada cabeça, uma sentença.
Fonte: Barros, Cloves de. Shinsetsu – o poder da gentileza. São Paulo: Planeta, 2018, p. 29-33