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Q3106615 Português
Dom Quixote



       Com suas voltas e reviravoltas, as aventuras de Dom Quixote traçam o limite: nelas terminam os jogos antigos da semelhança e dos signos; nelas já se travam novas relações. Dom Quixote não é o homem da extravagância, mas antes o peregrino meticuloso que se detém diante de todas as marcas da similitude. Ele é o herói do Mesmo. Assim como de sua estreita província, não chega a afastar-se da planície familiar que se estende em torno do Análogo. Percorre-a indefinidamente, sem transpor jamais as fronteiras nítidas da diferença, nem alcançar o coração da identidade. Ora, ele próprio é semelhante a signos. Longo grafismo magro como uma letra, acaba de escapar diretamente da fresta dos livros.

       Seu ser inteiro é só linguagem, texto, folhas impressas, história já transcrita. É feito de palavras entrecruzadas; é escrita errante no mundo em meio à semelhança das coisas. Não porém inteiramente: pois, em sua realidade de pobre fidalgo, só pode tornar-se cavaleiro, escutando de longe a epopeia secular que formula a Lei.

      O livro é menos sua existência que seu dever. Deve incessantemente consultá-lo, a fim de saber o que fazer e dizer, e quais signos dar a si próprio e aos outros para mostrar que ele é realmente da mesma natureza que o texto donde saiu. Os romances de cavalaria escreveram de uma vez por todas a prescrição de sua aventura. E cada episódio, cada decisão, cada façanha serão signos de que Dom Quixote é de fato semelhante a todos esses signos que ele decalcou.

     Mas se ele quer ser-lhes semelhante é porque deve prová-los, é porque os signos (legíveis) já não são semelhantes a seres (visíveis). Todos esses textos escritos, todos esses romances extravagantes são justamente incomparáveis: nada no mundo jamais se lhes assemelhou; sua linguagem infinita fica em suspenso, sem que qualquer similitude venha jamais preenchê-la; podem ser queimados todos e inteiramente, mas a figura do mundo não será por isso alterada.

     Assemelhando-se aos textos de que é o testemunho, o representante, o real análogo, Dom Quixote deve fornecer a demonstração e trazer a marca indubitável de que eles dizem a verdade, de que são realmente a linguagem do mundo. Compete-lhe preencher a promessa dos livros. Cabe-lhes refazer a epopeia, mas em sentido inverso: esta narrava (pretendia narrar) façanhas reais prometidas à memória; já Dom Quixote deve preencher com realidade os signos sem conteúdo da narrativa.

        Sua aventura será uma decifração do mundo: um percurso minucioso para recolher em toda a superfície da terra as figuras que mostram que os livros dizem a verdade.

      A façanha deve ser prova: consiste não em triunfar realmente - é por isso que a vitória não importa no fundo -, mas em transformar a realidade em signo. Em signo de que os signos da linguagem são realmente conformes às próprias coisas.

      Dom Quixote lê o mundo para demonstrar os livros. E não concede a si outras provas senão o espelhamento das semelhanças. Seu caminho todo é uma busca das similitudes: as menores analogias são solicitadas como signos adormecidos que cumprisse despertar para que se pusessem de novo a falar. Os rebanhos, as criadas, as estalagens tornam a ser a linguagem dos livros, na medida imperceptível em que se assemelham aos castelos, às damas e aos exércitos. Semelhança sempre frustrada, que transforma a prova buscada em irrisão e deixa indefinidamente vazia a palavra dos livros. Mas a própria não-similitude tem seu modelo que ela imita servilmente: encontra-o na metamorfose dos encantadores.

      De sorte que todos os indícios da não-semelhança, todos os signos que mostram que os textos escritos não dizem a verdade assemelham-se a esse jogo de enfeitiçamento que introduz, por ardil, a diferença no indubitável da similitude.

     E, como essa magia foi prevista e descrita nos livros, a diferença ilusória que ela introduz nunca será mais que uma similitude encantada. Um signo suplementar, portanto, de que os signos realmente se assemelham à verdade.


Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.
O mesmo tipo de sujeito de “Os romances de cavalaria escreveram de uma vez por todas a prescrição de sua aventura” (linha 23 e 24) é o mesmo que e encontra em: 
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