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Q2549158 Português
Todo filho é pai da morte de seu pai


       Há uma quebra na história familiar onde as idades se acumulam e se sobrepõem e a ordem natural não tem sentido: é quando o filho se torna pai de seu pai.

       É quando o pai envelhece e começa a trotear como se estivesse dentro de uma névoa. Lento, devagar, impreciso.

     É quando aquele pai que segurava com força nossa mão já não tem como se levantar sozinho.

      É quando aquele pai, outrora firme e intransponível, enfraquece de vez e demora o dobro da respiração para sair de seu lugar.

    É quando aquele pai, que antigamente mandava e ordenava, hoje só suspira, só geme, só procura onde é a porta e onde é a janela – tudo é corredor, tudo é longe.

     É quando aquele pai, antes disposto e trabalhador, fracassa ao tirar sua própria roupa e não lembrará de seus remédios.

    E nós, como filhos, não faremos outra coisa senão trocar de papel e aceitar que somos responsáveis por aquela vida. Aquela vida que nos gerou depende de nossa vida para morrer em paz.

     Todo filho é pai da morte de seu pai.

    Ou, quem sabe, a velhice do pai e da mãe seja curiosamente nossa última gravidez. Nosso último ensinamento. Fase para devolver os cuidados que nos foram confiados ao longo de décadas, de retribuir o amor com a amizade da escolta.

     E assim como mudamos a casa para atender nossos bebês, tapando tomadas e colocando cercadinhos, vamos alterar a rotina dos móveis para criar os nossos pais.

      Uma das primeiras transformações acontece no banheiro. Seremos pais de nossos pais na hora de pôr uma barra no box do chuveiro. A barra é emblemática.

       A barra é simbólica. A barra é inaugurar um cotovelo das águas.

      Porque o chuveiro, simples e refrescante, agora é um temporal para os pés idosos de nossos protetores. Não podemos abandoná-los em nenhum momento, inventaremos nossos braços nas paredes.

      A casa de quem cuida dos pais tem braços dos filhos pelas paredes. Nossos braços estarão espalhados, sob a forma de corrimões.

     Pois envelhecer é andar de mãos dadas com os objetos, envelhecer é subir escada mesmo sem degraus.

    Seremos estranhos em nossa residência. Observaremos cada detalhe com pavor e desconhecimento, com dúvida e preocupação. Seremos arquitetos, decoradores, engenheiros frustrados. Como não previmos que os pais adoecem e precisariam da gente?

    Nos arrependeremos dos sofás, das estátuas e do acesso caracol, nos arrependeremos de cada obstáculo e tapete.

      E feliz do filho que é pai de seu pai antes da morte, e triste do filho que aparece somente no enterro e não se despede um pouco por dia.

       Meu amigo José Klein acompanhou o pai até seus derradeiros minutos.

      No hospital, a enfermeira fazia a manobra da cama para a maca, buscando repor os lençóis, quando Zé gritou de sua cadeira:

      – Deixa que eu ajudo.

     Reuniu suas forças e pegou pela primeira vez seu pai no colo.

     Colocou o rosto de seu pai contra seu peito.

      Ajeitou em seus ombros o pai consumido pelo câncer: pequeno, enrugado, frágil, tremendo.

     Ficou segurando um bom tempo, um tempo equivalente à sua infância, um tempo equivalente à sua adolescência, um bom tempo, um tempo interminável.

       Embalou o pai de um lado para o outro.

        Aninhou o pai.

       Acalmou o pai.

      E apenas dizia, sussurrado:

     – Estou aqui, estou aqui, pai!

    O que um pai quer apenas ouvir no fim de sua vida é que seu filho está ali.



(Fabrício Carpinejar. Coluna GZH Comportamento. Em: 06/10/2013.)
O texto parte de um fato do cotidiano: da necessidade dos filhos cuidarem de seus pais quando eles apresentam limitações próprias da idade ou do estado de saúde. Diante das ideias evidenciadas ao longo do texto, marque V para as afirmativas verdadeiras e F para as falsas.


( ) A ordem natural é que os pais cuidem dos seus filhos, pois eles necessitam dos cuidados dos pais, como também “foge à ordem natural dos fatos” quando o filho morre antes dos pais.

( ) Declarar que “todo filho é pai da morte de seu pai” nos remete que há filhos que se tornam pais de seus pais, no momento em que eles se encontram debilitados devido a problemas consequentes da idade avançada ou de saúde.

( ) A expressão “pai da morte de seu pai” evidencia a proximidade do fim da vida dos pais.


A sequência está correta em
Alternativas