O desenvolvimento do tema da narrativa é atravessado pela e...
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Q785395
Português
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Texto para responder às questões.
TE
De todas as coisas pequenas, estava ali a
menor de todas que eu já tinha visto. Não porque ela
sofresse dessas severas desnutrições africanas -
embora passasse fome mas pelo que eu saberia
dela depois.
Teria uns 4 anos de idade, estava inteiramente
nua e suja, o nariz catarrento, o cabelo desgrenhado
numa massa disforme, liso e sujo. Chorava alto,
sentada no chão da sala escura. A casa de taipa tinha
três cômodos pequenos.
Isso que chamei de sala não
passava de um espaço de 2 m por 2 m, sem janelas.
Apenas a porta, aberta na parte de cima, jogava
alguma luz no ambiente de teto baixo e chão batido.
Isso aconteceu na semana passada, num
distrito de Sertânia, cidade a 350 km de Recife, no
sertão de Pernambuco. A mãe e os outros seis filhos
ficaram na porta a nos espreitar, os visitantes
estranhos. O marido, carregador de estrume,
ganhava R$ 20 por semana, o que somava R$ 80 por
mês. Essa a renda do casal analfabeto. Nenhum dos
sete filhos frequentava a escola. Não havia água
encanada. Compravam a R$ 4 o tambor de 24 litros.
O choro da menina seguia atrapalhando a conversa.
- Ei, por que você está chorando? perguntei,
enfiando a cabeça no vão da porta. A menina não
ouviu, largada no chão.
- Ei! Vem cá, eu vou te dar um presente -
repeti. Ela olhou para mim pela primeira vez. Mas não
se mexeu, ainda chorando.
- Como é o nome dela? - perguntei à mulher.
-A gente chama ela de Te-disse, banguela.
-Te? Mas qual o nome dela? - insisti.
- Agente chama ela de Te, que ela ainda não
foi batizada não.
- Como assim? Ela não tem nome? Não foi
registrada no cartório?
- Não, porque eu ainda não fui atrás de fazer.
Te. Olhei de novo para a menina. Era a menor
coisa do mundo, uma pessoa sem nome. Um nada.
“Te” era antes da sílaba - era apenas um fonema, um
murmúrio, um gemido. Entendi o choro, o soluço, o
grito ininterrupto no meio da sala. A falta de nome
impressionava mais do que a falta de todo o resto.
Te chorava de uma dor, de uma falta
avassaladora. Só podia ser. Chorava de solidão,
dessa solidão dos abandonados, dos que não
contam para nada, dos que mal existem. Ela era o
resultado concreto das políticas civilizadas (as
econômicas, as sociais) e de todo o nosso
comportamento animal: o de ir fazendo sexo e filhos
como os bichos egoístas que somos, enfim.
Era como se aquele agrupamento humano
(uma família?) vivesse num estágio qualquer pré-
linguagem, em que nomear as coisas e as pessoas
pouco importava. Rousseau diz que o homem
pré-histórico não precisava falar para se alimentar.
Não foi por causa da comida que surgiu a linguagem.
“O fruto não desaparece de nossas mãos”, explica.
Por isso não era necessário denominá-lo.
As primeiras palavras foram pronunciadas
para exprimir o que não vemos, os sentimentos, as
paixões, o amor, o ódio, a raiva, a comiseração.
“Só chamamos as coisas por seus verdadeiros
nomes quando as vemos em suas form as
verdadeiras.” Só quando Te viu a coisa na minha mão
se calou.
- Ei, Te, olha o que eu tenho para te dar!
Ela virou-se na minha direção. Fez-se um
silêncio na sala. Era uma bala enrolada num papel
verde, com letras vermelhas. Então ela se levantou,
veio até a porta e pegou o doce, voltou para o mesmo
lugar e recomeçou seu lamento.
Nem a bala serviu de consolo. Era tudo
amargura. Só restava chorar, chorar e chorar por
essa morte em vida, por essa falta de nome, essa
desolação.
FELINTO, Marilene. Te. Folha de S. Paulo, São Paulo, 30 jan.
2001. Brasil, Cotidiano, p. C2.
O desenvolvimento do tema da narrativa é
atravessado pela experiência tanto coletiva quanto
particular do narrador. Essa característica particular,
no texto de Marilene Felinto, é irrefutável em: