No texto, estão presentes as formas “por que” e “porque”, na...
Come, meu filho
– O mundo parece chato mas eu sei que não é.
[...]
– Sabe por que parece chato? Porque, sempre que a gente olha, o céu está em cima, nunca está embaixo, nunca está de lado. Eu sei que o mundo é redondo porque disseram, mas só ia parecer redondo se a gente olhasse e às vezes o céu estivesse lá embaixo. Eu sei que é redondo, mas para mim é chato, mas Ronaldo só sabe que o mundo é redondo, para ele não parece chato.
– ...
– Porque eu estive em muitos países e vi que nos Estados Unidos o céu também é em cima, por isso o mundo parecia todo reto para mim. Mas Ronaldo nunca saiu do Brasil e pode pensar que só aqui é que o céu é lá em cima, que nos outros lugares não é chato, que só é chato no Brasil, que nos outros lugares que ele não viu vai arredondando. Quando dizem para ele, é só acreditar, pra ele nada precisa parecer. Você prefere prato fundo ou prato chato?
– Chat... raso, quer dizer.
– Eu também. No fundo, parece que cabe mais, mas é só para o fundo, no chato cabe para os lados e a gente vê logo tudo o que tem. Pepino não parece inreal?
– Irreal.
– Por que você acha?
– Se diz assim.
– Não, por que é que você também achou que pepino parece inreal? Eu também. A gente olha e vê um pouco do outro lado, é cheio de desenho bem igual, é frio na boca, faz barulho de um pouco de vidro quando se mastiga. Você não acha que pepino parece inventado?
– Parece.
– Onde foi inventado feijão com arroz?
– Aqui.
– Ou no árabe, igual que Pedrinho disse de outra coisa?
– Aqui.
– Na Sorveteria Gatão o sorvete é bom porque tem gosto igual da cor. Para você carne tem gosto de carne?
– Às vezes.
– Duvido! Só quero ver: da carne pendurada no açougue?!
– Não.
– E nem da carne que a gente fala. Não tem gosto de quando você diz que carne tem vitamina.
– Não fala tanto, come.
– Mas você está olhando desse jeito para mim, mas não é para eu comer, é porque você está gostando muito de mim, adivinhei ou errei?
– Adivinhou. Come, Paulinho.
– Você só pensa nisso. Eu falei muito para você não pensar só em comida, mas você vai e não esquece.
(LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo, Círculo do livro, 1988. P. 122-124.)