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Q2155111 Português
Crônica da vida que passa

       Às vezes, quando penso nos homens célebres, sinto por eles toda a tristeza da celebridade.
       A celebridade é um plebeísmo. Por isso deve ferir uma alma delicada. É um plebeísmo porque estar em evidência, ser olhado por todos inflige a uma criatura delicada uma sensação de parentesco exterior com as criaturas que armam escândalo nas ruas, que gesticulam e falam alto nas praças. O homem que se torna célebre fica sem vida íntima: tornam‐se de vidro as paredes de sua vida doméstica; é sempre como se fosse excessivo o seu traje; e aquelas suas mínimas ações – ridiculamente humanas às vezes – que ele quereria invisíveis, côa‐as a lente da celebridade para espetaculosas pequenezes, com cuja evidência a sua alma se estraga ou se enfastia. É preciso ser muitogrosseiro para se poder ser célebre à vontade.
    Depois, além dum plebeísmo, a celebridade é uma contradição. Parecendo que dá valor e força às criaturas, apenas as desvaloriza e as enfraquece. Um homem de gênio desconhecido pode gozar a volúpia suave do contraste entre a sua obscuridade e o seu gênio; e pode, pensando que seria célebre se quisesse, medir o seu valor com a sua melhor medida, que é ele próprio. Mas, uma vez conhecido, não está mais na sua mão reverter à obscuridade. A celebridade é irreparável. Dela como do tempo, ninguém torna atrás ou se desdiz.
       E é por isto que a celebridade é uma fraqueza também. Todo o homem que merece ser célebre sabe que não vale a pena sê‐lo. Deixar‐se ser célebre é uma fraqueza, uma concessão ao baixo‐instinto, feminino ou selvagem, de querer dar nas vistas e nos ouvidos.
      Penso às vezes nisto coloridamente. E aquela frase de que “homem de gênio desconhecido” é o mais belo de todos os destinos, torna‐se‐me inegável; parece‐me que esse é não só o mais belo, mas o maior dos destinos.

(PESSOA, Fernando. Páginas íntimas e de autointerpretação. Lisboa: Edições Ática, [s.d.]. p. 66‐67.) 
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