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Q2949127 Português

Acostumar-se a tudo?

A gente se acostuma praticamente a tudo.

Isso é bom? Isso é ruim?

A resposta – inevitável – é: isso é bom e é ruim.

Senão, vejamos. Nossa elasticidade, nossa capa-

5 cidade de adaptação, tem permitido que sobrevivamos em

condições muitas vezes bastante adversas.

Lembro-me de que o escritor francês Saint-Exupéry

contou, uma vez, sobre como o avião caiu em cima de

montanhas geladas e como o piloto conseguiu sobreviver

10 durante vários dias, enfrentando o frio, a fome, a dor e

inúmeros perigos, adaptando-se às circunstâncias para,

na medida do possível, poder dominá-las.

Nunca esquecerei o justificado orgulho com que ele

falou: “O que eu fiz, nenhum bicho jamais faria”.

15 Por outro lado, a capacidade de adaptação pode

funcionar como mola propulsora de um mecanismo

oportunista, de uma facilitação resignada à aceitação de

coisas inaceitáveis.

É um fenômeno que, infelizmente, não é raro.

20 Acontece nas melhores famílias. Pode estar acontecendo

agora mesmo, com você, que está lendo este jornal.

Quando nos acostumamos a ver o que se passa

em volta e começamos a achar que tudo é “normal”,

deixamos de enxergar as “anormalidades”, deixamos de

25 nos assustar e de nos preocupar com elas.

O poeta espanhol Federico Garcia Lorca esteve nos

Estados Unidos em 1929/1930 e ficou assustado com

Nova York. Enquanto os turistas, como nós, ficam maravilhados

com a imponência dos prédios, Lorca se referia a

30 eles como “montanhas de cimento”.

Enquanto os turistas admiram a qualidade da

comida nos magníficos restaurantes, Lorca se espantava

com o fato de ninguém se escandalizar com a matança

dos animais. (...)

35 A insensibilidade se generaliza, a indiferença em

relação aos animais se estende, inexoravelmente, aos

seres humanos. A mesma máquina que tritura os animais

esmaga as vacas e sufoca os seres humanos.

Lorca interpela os que se beneficiam com esse

40 sistema, investe contra a contabilidade deles: “Embaixo

das multiplicações / há uma gota de sangue de pato. /

Embaixo das divisões, há uma gota de sangue de

marinheiro”.

Acusa os detentores do poder e da riqueza de

45 camuflarem a dura realidade social para fazê-la aparecer

apenas como espaço de rudes entretenimentos e

vertiginoso progresso tecnológico. Furioso, brada:

“Cuspo-lhes na cara”.

É possível que alguns aspectos da reação do poeta

50 nos pareçam exagerados, unilaterais. Afinal, Nova York

também é lugar de cultura, tem museus maravilhosos,

encena peças magníficas, faz um excelente cinema,

apresenta espetáculos musicais fantásticos.

O exagero, porém, ajuda Garcia Lorca a chamar

55 a nossa atenção para o “lado noturno” dessa “face

luminosa” de Nova York. E Nova York, no caso, vale

como símbolo das contradições que estão enraizadas

em praticamente todas as grandes cidades modernas.

Os habitantes dessas cidades tendem a fixar sua

60 atenção em falhas que podem ser sanadas, em defeitos

que podem ser superados, em feridas que podem ser

curadas por um tratamento tópico.

Falta-lhes a percepção de que determinadas

questões só poderiam ser efetivamente resolvidas por

65 uma mudança radical, através de um novo modelo.

Só um modelo novo de cidade permitirá que sejam

pensadas e postas em prática soluções para os impasses

a que chegaram as nossas megalópoles.

O que é pior do que ter graves problemas? É ter

70 graves problemas e se recusar a reconhecê-los.

A condenação do poeta levanta questões para as

quais não temos, atualmente, soluções viáveis. Lorca nos

presta, contudo, o relevante serviço de nos cobrar que as

encaremos.

KONDER, Leandro. Jornal do Brasil. 26 maio 2005.

Assinale a opção em que o par de orações NÃO apresenta transformação da voz verbal.

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