Leia o poema abaixo, de Gregório de Matos Guerra:À negra Mar...
Leia o poema abaixo, de Gregório de Matos Guerra:
À negra Margarida que acariciava um mulato
1 Carina, que acariais
aquele Senhor José
ontem tanga de guiné,
hoje Senhor de Cascais:
vós, e outras catingas mais,
outros cães, e outras cadelas
amais tanto as parentelas,
que imagina o vosso amor,
que em chamando ao cão Senhor
Ihe dourais suas mazelas.
2 Longe vá o mau agouro;
tirai-vos desse furor,
que o negro não toma cor,
e menos tomará ouro:
quem nasceu de negro couro,
sempre a pintura o respeita
tanto, que nunca o enfeita
de outra cor, pois fora aborto,
é, como quem nasceu torto,
que tarde, ou nunca endireita.
3 A nenhum cão chamais tal,
Senhor ao cão? isso não:
que o Senhor é perfeição,
e o cão é perro neutral:
do dilúvio universal
a esta parte, que é
desde o tempo de Noé,
gerou Cão filho maldito
negros de Guiné, e Egito,
que os brancos gerou Jafé.
4 Gerou o maldito Cão
não só negros negregados,
mas como amaldiçoados
sujeitos à escravidão:
ficou todo o canzarrão
sujeito a ser nosso servo
por maldito, e por protervo;
e o forro, que inchar se quer,
não pode deixar de ser
dos nossos cativos nervo.
5 Os que no direito expertos
penetram termos tão finos,
bem sabem, que os libertinos
distam muito dos libertos:
se há brancos tão inexpertos,
que dão benignos, ou bravos
alforrias por agravos:
os que destes são nascidos,
por libertinos são tidos,
porém são filhos de escravos.
6 O filho da minha escrava,
e dos meus vizinhos velhos,
que eu vejo pelos artelhos,
que ontem soltaram da trava;
porque tanto se deprava
com tal brio, e pundonor,
que quer Ihe chamem Senhor:
se consta o seu senhorio
de um bananal regadio,
que cavou com seu suor!
7 E se são justos os brios
daqueles, que escravos têm,
nisso a mor baixeza vêm,
pois têm por servos seu tios:
e se algum com desvarios
diz, que o ter por natural
sangue de branco o faz tal,
nisso a condenar-se vêm,
porque se o branco faz bem,
como o negro não faz mal?
8 Tomem de leite um cabaço,
lancem-lhe um golpe de tinta,
a brancura fica extinta,
todo o leite sujo, e baço:
assim sucede ao madraço,
que com a negra se tranca;
do branco o leite se arranca,
da negra a tinta se entorna,
o leite negro se torna,
e a tinta não se faz branca.
9 Mas tornando a vós, Carira,
que ao negro Senhor chamais,
porque é Senhor de Cascais,
quando vos casca, e atira:
crede, amiga, que é mentira
ser branco um negro da Mina,
nem vós sejais tão menina,
que creiais, que ele não crê,
que é negro, pois sempre vê
em casa a mãe Caterina.
10 Dizei ao Vosso Senhor
entre um, e outro carinho,
que o negro do seu focinho
é cor, que não toma cor:
e que dê graças a Amor
que vos pôs os olhos tortos
para não ver tais abortos,
mas que há de esbrugar mantenha
daqui até que Deus venha
julgar os vivos, e mortos.
(RONCARI, Luiz. Literatura Brasileira: dos primeiros cronistas aos últimos românticos. 2. ed. São Paulo: Edusp, 2014, p. 115-118.)
Considere as seguintes afirmações sobre o poema.
I. A sonoridade de “cão”, na terceira estrofe, possibilita que associe os negros a Cam, filho amaldiçoado de Noé.
II. Da segunda estrofe à oitava ocorre o procedimento estilístico denominado zeugma, pois há omissão do sujeito a quem o eu-lírico se dirige no poema, já exposto na primeira estrofe:“Carina”.
III. A metáfora do leite e da tinta, presente na oitava estrofe, associa-se ao critério de limpeza de sangue, pois a ideia, no mundo colonial, é a de que a mestiçagem não branqueava o sangue negro, mas enegrecia o sangue branco.
IV. O poema começa com a crítica à negra Carina, que dedica seus afetos a um mulato, que, por ser livre, afasta-se de seus familiares maternos, ainda escravos, já que devia ser filho de escrava com algum senhor branco.
V. A metonímia é a figura de linguagem que o poeta usa para caracterizar seus desafetos. Exemplos são: “tanga”, “catingas” e “outros cães, cadelas” presentes na primeira estrofe.
Assinale a alternativa em que todas as afirmativas estão CORRETAS: