No 5º§, o autor cita a expressão “autor defunto”, muito famo...
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Ano: 2025
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
HEMOBRÁS
Provas:
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Instituto Consulplan - 2025 - HEMOBRÁS - Assistente Industrial e de Gestão Corporativa – Arquivo |
Q3261778
Português
Texto associado
Literalmente latente, mas talvez não
Melhor pecar por ser óbvio do que por ser omisso: palavras são as menores unidades de sentido autônomo da escrita.
Sendo assim, nenhum escriba conseguirá ir muito longe se não cultivar com elas, quase sempre por meio da leitura, uma intimidade pelo menos razoável.
Isso significa – não apenas, mas em primeiro lugar – saber o que elas significam em estado de dicionário. No meu caso,
não há maior inimigo da boa vontade que tenho para a leitura de um texto do que descobrir que seu autor usa, por exemplo,
“literal” para o que é figurado e “latente” com o sentido de “patente”.
Sim, sou desses. Embora seja uma frase de uso comum em contextos informais, sobretudo na fala, acredito que “Estou
literalmente frito” jamais ganhará circulação tranquila na linguagem culta.
Qual é o sentido de garantir a literalidade do que não tem nenhuma? Cabe, claro, a ressalva dos casos gravíssimos de
quem se fritou caindo em frigideiras industriais, mas estes são bem raros.
A rigor, “A viagem me deixou literalmente morto de cansado” é uma afirmação que só poderia ser feita por um autor
defunto como Brás Cubas – ou, quem sabe, recebida como mensagem do além em centros espíritas.
Problema semelhante tem uma frase como “Fulano me ligou em prantos, a dor dele com a separação é latente”. Não, não
é. A dor do fulano talvez fosse latente – quer dizer, não visível, presente mas não manifesta – antes do choro. Depois dele é
patente, ou seja, evidente, está na cara.
Alguns estudiosos argumentam que o uso, mesmo que a princípio esteja equivocado, acabará por normalizar tudo isso –
se é que já não o fez. No inglês, o emprego de “literalmente” quando se trata de sentido figurado, como simples marca de
ênfase, já ganhou a chancela de certos dicionários.
O uso é poderoso mesmo. Não faltam na história das línguas exemplos de erros produtivos, mal-entendidos que criaram
novos sentidos. A palavra “floresta” nos chegou do francês antigo “forest” e ganhou um L na alfândega porque o pessoal achou
que tivesse a ver com “flor”. Não tinha, mas passou a ter.
No entanto, a famosa cartada de que “a língua é viva” – sem dúvida de grande autoridade nas conversas sobre palavras –
não me parece liquidar o jogo nesse caso. Sim, a língua é viva. Como todo organismo, pode adoecer.
Uma coisa é reconhecer que, no fluxo contínuo da fala das ruas, todo idioma está fadado a mudar de feição o tempo todo,
com as palavras ganhando pouco a pouco sutilezas que podem acabar por torná-las inteiramente diferentes do que foram um
dia. É verdade.
No entanto, quando a confusão recai sobre pares de antônimos tão perfeitos quanto literal-figurado e latente-patente,
acreditar que a ignorância venha a ser produtiva me parece um excesso de otimismo.
A única consequência lógica de que um de dois termos opostos passe a significar o mesmo que seu contrário é a destruição
de ambos, sua diluição na geleia do que não faz sentido algum.
Os pares literal-figurado e latente-patente são como claro-escuro, alegre-triste, quente-frio, morto-vivo, alto-baixo etc.
Imagine se essas palavras fossem intercambiáveis.
Quando o primeiro termo se define em oposição ao segundo e vice-versa, fundi-los é entropia, perda de funcionalidade
da linguagem, que passa a ser capaz de dizer menos do que dizia. Numa palavra, burrice.
Pode ser que um dia tudo isso seja considerado correto? Pode. Espero estar literalmente morto até lá.
(RODRIGUES, Sérgio. Literalmente latente, mas talvez não. Jornal Folha de S. Paulo, 2023.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/. Acesso em: janeiro de 2025.)
No 5º§, o autor cita a expressão “autor defunto”, muito famosa no romance “Obras póstumas de Brás Cubas”, de Machado
de Assis. A mudança de posição dos termos – “autor defunto” e “defunto autor” – acarreta sensível alteração semântica
entre essas expressões. O mesmo ocorre em: