Assinale a afirmação correta a respeito dos trechos selecion...
Leia a crônica “Não parta”, de Antonio Prata, para responder à questão.
Ter trinta e poucos anos significa, entre outras coisas, que é praticamente impossível reunir cinco casais num jantar sem que haja pelo menos uma grávida. E estar na presença de uma grávida significa, entre outras coisas, que é praticamente impossível falar de qualquer outro assunto que não daquele rotundo e miraculoso acontecimento, a desenrolar-se do lado de lá do umbigo em expansão.
Enquanto a conversa gira em torno dos nomes cogitados, da emoção do ultrassom, dos diferentes modelos de carrinho, o clima costuma ser agradável e os convivas se aprazem diante da vida que se aproxima. Mas eis então que alguém pergunta: “e aí, vai ser parto normal ou cesárea?”, e toda possível harmonia vai pra cucuia.
Num extremo, estão as mulheres que querem parir de cócoras, ao pé de um abacateiro, sob os cuidados de uma parteira de cem anos, tendo como anestesia apenas um chá de flor de macaúba e cantigas de roda de 1924. Na outra ponta, estão as que têm tremedeiras só de pensar em parto normal, pretendem ir direto pra cesárea, tomar uma injeção e acordar algumas horas depois, tendo no colo um bebê devidamente parido, lavado, escovado, penteado e com aquela pulseirinha vip no braço, já com nome, número de série e código de barras.
Os dois lados acusam o outro de violência: as naturebas dizem que a cesárea é um choque; as artificialebas alegam que dar as costas à medicina é uma irresponsabilidade. Eu, que durante meses ouvi calado as discussões, pesei bastante os argumentos e cheguei, enfim, a uma conclusão: abaixo o nascimento! Viva a gravidez!
Imaginem só a situação: os primeiros grãos de consciência germinam em seu cérebro. Você boia num líquido morninho – nem a gravidade, essa pequena e constante chateação, te aborrece. Você recebe alimento pelo umbigo. Você dorme, acorda, dorme, acorda e jamais tem que cortar as unhas dos pés. Então, de repente, o líquido se vai, as paredes te espremem, a fonte seca, a luz te cega e, daí pra frente, meu amigo, é só decadência: cólicas, fome, sede, pernilongos, decepções, contas a pagar. Eis um resumo de nossa existência: nove meses no paraíso, noventa anos no purgatório.
Freud diz que todo amor que buscamos é um pálido substituto de nosso primeiro, único e grande amor: a mãe. Discordo. A mãe já é um pálido substituto de nosso primeiro, único e grande amor: a placenta. Tudo, daí pra frente – as religiões, os relacionamentos amorosos, a música pop, a semiótica* e a novela das oito – é apenas uma busca inútil e desesperada por um novo cordão umbilical, aquele cabo USB por onde fazíamos, em banda larga, o download da felicidade. Do parto em diante, meu caro leitor, meu caro companheiro de infortúnio, a vida é conexão discada, wi-fi mequetrefe, e em vão nos arrastamos por aí, atrás daquela impossível protoconexão.
No próximo jantar, se estiver do lado de uma grávida, jogarei um talher no chão e, ao abaixar para pegá-lo, cochicharei bem rente à barriga: “te segura, garoto! Quando começar a tremedeira, agarra bem nas paredes, se enrola no cordão, carca os pés na borda e não sai, mesmo que te cutuquem com um fórceps, te estendam uma mão falsamente amiga, te sussurrem belas cantigas de roda, de 1924. Te segura, que o negócio aqui é roubada!”.
(Revista Ser Médico. Edição 57 – Outubro/Novembro/Dezembro de 2011. www.cremesp.org.br. Adaptado)
*semiótica: ciência dos modos de produção, de funcionamento e de recepção dos diferentes sistemas de sinais de comunicação entre indivíduos ou
coletividades.
- Gabarito Comentado (0)
- Aulas (2)
- Comentários (7)
- Estatísticas
- Cadernos
- Criar anotações
- Notificar Erro
Comentários
Veja os comentários dos nossos alunos
e) CORRETA. Quando o autor afirma que a VIDA é CONEXÃO DISCADA e WI-FI MEQUETREFE, compara aquela a estes . Conexão discada está em sentido figurado pois afirma o autor que conexão discada é vida, o que em verdade não é, e não pode ser. Assim o será somente se considerarmo-la figurativamente.
Como um acontecimento pode ser rotundo (redondo)?
Isso não seria sentido figurado?
Não há comparação entre as ideias? É por isso que a letra "a" está errada?
a) Não há comparação de ideias. Rotundo e Miraculoso são adjetivos de sentido próprio.
b) Há sequência gradativa de ideias, porém "devidamente parido" tem sentido próprio. Parido = que nasceu, que deu à luz
c) Há uma comparação de ideias, porém "paraíso" e "purgatório" tem sentido figurado.
d) Há uma sequência gradativa de ideias, porém "download da felicidade" é uma figura de linguagem.
e) Há uma comparação de ideias entre "vida" e "conexão discada". E "conexão discada" é uma figura de linguagem.
Gabarito E.
Futura Juíza: o que pode ser redondo quando falamos em gravidez? Sentido figurado só para a Grávida de Taubaté!!!. rsrs
Wilson, rotundo se refere ao acontecimento. Também fiquei com essa dúvida. Acontecimento redondo? MEsmo gravidez...gravidez redonda? gravidez tem sentido abstrato, não tem forma (em sentido proprio). Se falasse da barriga, seria sentido proprio.
Afinal, porque não há comparação de ideias? ele não compara o meio externo com o interno?
Clique para visualizar este comentário
Visualize os comentários desta questão clicando no botão abaixo