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Trecho do livro Dois Irmãos, de Milton Hatoum

    Naquela época, quando Omar saiu do presídio, eu ainda o vi num fim de tarde.

    O aguaceiro era tão intenso que a cidade fechou suas portas e janelas bem antes do anoitecer. Lembrome de que estava ansioso naquela tarde de meio-céu. Eu acabara de dar minha primeira aula no liceu onde havia estudado e vim a pé pra cá, sob a chuva, observando as valetas que dragavam o lixo, os leprosos amontoados, encolhidos debaixo dos outizeiros. Olhava com assombro e tristeza a cidade que se mutilava e crescia ao mesmo tempo, afastada do porto e do rio, irreconciliável com seu passado.

    Um relâmpago havia provocado um curto-circuito na Casa Rochiram. O bazar indiano tornara-se um breu na tarde sombria, coberta de nuvens baixas e pesadas. Entrei no meu quarto, este mesmo quarto nos fundos da casa de outrora. Trouxera para perto de mim o bestiário esculpido por minha mãe. Era tudo o que restara dela, do trabalho que lhe dava prazer: os únicos gestos que lhe devolviam durante a noite a dignidade que ela perdia durante o dia. Assim pensava ao observar e manusear esses bichinhos de pau-rainha, que antes me pareciam apenas miniaturas imitadas da natureza. Agora meu olhar os vê como seres estranhos.

    [...] O toró que cobria Manaus, trégua na quentura do equador, me aliviava. Frutas e folhas boiavam nas poças que cercavam a porta do meu quarto. Nos fundos, o capim crescera, e a cerca de pau podre, cheia de buracos, não era mais uma fronteira com o cortiço. Desde a partida de Zana, eu havia deixado ao furor do sol e da chuva o pouco que restara das árvores e trepadeiras. Zelar por essa natureza significava uma submissão ao passado, a um tempo que morria dentro de mim.

    Ainda chovia, com trovoadas, quando Omar invadiu o meu refúgio. Aproximou-se do meu quarto devagar, um vulto. Avançou mais um pouco e estacou bem perto da velha seringueira, diminuído pela grandeza da árvore. Não pude ver com nitidez o seu rosto. Ele ergueu a cabeça para a copa que cobria o quintal. Depois virou o corpo, olhou para trás: não havia mais alpendre, a rede vermelha não o esperava. Um muro alto e sólido separava o meu canto da Casa Rochiram. Ele ousou e veio avançando, os pés descalços no aguaçal. Um homem de meia-idade, o Caçula. E já quase velho. Ele me encarou. Eu esperei. Queria que ele confessasse a desonra, a humilhação. Uma palavra bastava, uma só. O perdão.

    Omar titubeou. Olhou para mim, emudecido. Assim ficou por um tempo, o olhar cortando a chuva e a janela para além de qualquer ângulo ou ponto fixo. Era um olhar à deriva. Depois recuou lentamente, deu as costas e foi embora.

(HATOUM, Milton. Dois irmãos. São Paulo: Companhia das Letras, 2000).

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Interpretação do Texto

O trecho do livro de Dois Irmãos, de Milton Hatoum, apresenta uma situação complexa entre dois personagens, que culmina em um encontro que não se concretiza da forma esperada. A alternativa correta é a letra D - o último encontro entre duas personagens.

Justificativa da Alternativa Correta:

Esta alternativa se destaca porque, ao longo do texto, fica evidente que o encontro entre os dois personagens, Omar e o narrador, carrega uma carga emocional significativa. O narrador expressa a expectativa de que Omar confesse algo importante, que é a "desonra" e a "humilhação", demonstrando que esse encontro é de vital importância na sua relação. No entanto, Omar hesita e acaba se afastando, o que marca a intensidade e a finalização desse momento, indicando que pode ser o último entre eles.

Análise das Alternativas Incorretas:

A - um encontro esperado entre duas pessoas: Essa alternativa é imprecisa, pois, embora haja uma expectativa, o encontro não acontece como o narrador deseja. O que se espera é uma confissão, que não ocorre.

B - um dia comum vivido por dois personagens: O trecho retrata um dia carregado de emoções e significados, não se limitando a ser comum. A intensidade dos sentimentos e a situação descrita vão além do cotidiano.

C - a lembrança de um acontecimento banal: Esta opção falha em reconhecer a profundidade emocional do encontro. O que está em jogo entre os personagens é muito mais do que um evento trivial; é uma questão de honra e perdão.

E - o registro de um dia habitual de chuva na cidade de Manaus: Embora a chuva e a cidade sejam elementos presentes, o foco do trecho é na relação entre os personagens, e não em descrever o clima ou a rotina da cidade.

Portanto, a alternativa correta é a letra D, pois reflete a complexidade do último encontro e a carga emocional que ele carrega.

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"Naquela época, quando Omar saiu do presídio, eu ainda o vi num fim de tarde" Dá a ideia de que ele ainda teve um último encontro com Omar.

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