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Q1959078 Português
Atenção: Para responder à questão, leia o trecho inicial do conto “Virginius: narrativa de um advogado”, de Machado de Assis. 


      Não me correu tranquilo o S. João de 185...
      Duas semanas antes do dia em que a Igreja celebra o evangelista, recebi pelo correio o seguinte bilhete, sem assinatura e de letra desconhecida:
      “O Dr. *** é convidado a ir à vila de... tomar conta de um processo. O objeto é digno do talento e das habilitações do advogado. Despesas e honorários ser-lhe-ão satisfeitos antecipadamente, mal puser pé no estribo. O réu está na cadeia da mesma vila e chama-se Julião. Note que o Dr. é convidado a ir defender o réu.”
      Li e reli este bilhete; voltei-o em todos os sentidos; comparei a letra com todas as letras dos meus amigos e conhecidos... Nada pude descobrir. 
      Entretanto, picava-me a curiosidade. Luzia-me um romance através daquele misterioso e anônimo bilhete. Tomei uma resolução definitiva. Ultimei uns negócios, dei de mão outros, e oito dias depois de receber o bilhete tinha à porta um cavalo e um camarada para seguir viagem. No momento em que me dispunha a sair, entrou-me em casa um sujeito desconhecido, e entregou-me um rolo de papel contendo uma avultada soma, importância aproximada das despesas e dos honorários. Recusei apesar das instâncias, montei a cavalo e parti.
      Só depois de ter feito algumas léguas é que me lembrei de que justamente na vila a que eu ia morava um amigo meu, antigo companheiro da academia. 
      Poucos dias depois apeava eu à porta do referido amigo. Depois de entregar o cavalo aos cuidados do camarada, entrei para abraçar o meu antigo companheiro de estudos, que me recebeu alvoroçado e admirado.
      − A que vens, meu amigo? A que vens? perguntava-me ele.
      − Vais sabê-lo. Creio que há um romance para deslindar. Há quinze dias recebi no meu escritório, na corte, um bilhete anônimo em que se me convidava com instância a vir a esta vila para tomar conta de uma defesa. Não pude conhecer a letra; era desigual e trêmula, como escrita por mão cansada...
      − Tens o bilhete contigo?
      − Tenho.
      Tirei do bolso o misterioso bilhete e entreguei-o aberto ao meu amigo. Ele, depois de lê-lo, disse:
      − É a letra de Pai de todos.
      − Quem é Pai de todos?
      − É um fazendeiro destas paragens, o velho Pio. O povo dá-lhe o nome de Pai de todos, porque o velho Pio o é na verdade.
      − Bem dizia eu que há romance no fundo!... Que faz esse velho para que lhe deem semelhante título?
      − Pouca coisa. Pio é, por assim dizer, a justiça e a caridade fundidas em uma só pessoa. Só as grandes causas vão ter às autoridades judiciárias, policiais ou municipais; mas tudo o que não sai de certa ordem é decidido na fazenda de Pio, cuja sentença todos acatam e cumprem. Seja ela contra Pedro ou contra Paulo, Paulo e Pedro submetem-se, como se fora uma decisão divina. Quando dois contendores saem da fazenda de Pio, saem amigos. É caso de consciência aderir ao julgamento de Pai de todos.
      O meu amigo continuou a desfiar as virtudes do fazendeiro. Meu espírito apreendia-se cada vez mais de que eu ia entrar em um romance. Finalmente o meu amigo dispunha-se a contar-me a história do crime em cujo conhecimento devia eu entrar daí a poucas horas. Detive-o.
      − Não, disse-lhe, deixa-me saber de tudo por boca do próprio réu. Depois compararei com o que me contarás.
      − É melhor. Julião é inocente...


(Adaptado de: ASSIS, Machado de. Obra Completa, v. II. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994)

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