INSTRUÇÃO: leia o texto abaixo e responda à questão.
Saudades da secretária eletrônica
Antonio Prata
20 nov 2021
Meu velho pai sabe das coisas. Eu o chamo de “velho pai” não porque seja realmente velho: é
como ele se chama ao falar comigo. Às vezes usa o epíteto num modo semi-irônico, como quem põe
um cachimbo na boca pra uma foto. Outras vezes é mais a sério — acende o cachimbo. Na semana
passada, por exemplo, me escreveu uma e meia da manhã pedindo para lhe mandar um x-salada:
“Alimente seu velho pai”. Meu velho pai não usa Uber Eats, iFood, Rappi ou qualquer uma “dessas
coisas”.
Meu velho pai tá de saco cheio “dessas coisas”. Outro dia ele me ligou. “Recebeu minha mensagem?”.
“Por onde?”. Silêncio. “PQP! Não aguento mais essas coisas” — e começou a reclamar da dificuldade
de nos comunicarmos por tantos canais: “É WhatsApp, SMS, e-mail, DM no Facebook, no Instagram,
no Twitter...”. “Qual era a mensagem, pai?”. “Aí é que tá. Eu tive uma ideia muito boa no meio da noite
e te escrevi pra não esquecer, agora não lembro nem da ideia e nem por onde escrevi”.
Segundo meu velho pai, a razão de ele e tantos outros estarmos desmemoriados é “dessas coisas”:
aplicativos e plataformas e dispositivos jorrando uma quantidade infinita de informação que de bom
grado entuchamos retina abaixo, cada tela um daqueles funis de milho pra transformar fígado de ganso
em patê. (Talvez o plano do Zuckerberg e seus comparsas seja esse: transformar nossos cérebros em
patê para depois comê-los com cream-crackers-low-carb-glúten-free-ESG-sem-pegadas-de-carbono. A
hipótese é absurda, mas não mais que o furdunço global que estamos vivendo).
Meu velho pai tá injuriado com o furdunço global que estamos vivendo e tem uma proposta bem
razoável para minorá-lo. “Cinco anos sem inventarem nada. Nada. Todo mundo fica com o celular que
tem, com o Android que tem, o IOS que tem, com os aplicativos que tem e os canais de televisão que
tem. Quando a gente aprender a usar tudo, assistir a todas as séries, ler todos os livros, ouvir todos os
podcasts, vê se precisa inventar mais alguma coisa ou para por aí mesmo”.
Concordo. A humanidade precisa de um novo Adobe Reader a cada semana pra quê, exatamente?!
De que forma PhDs em física podem “otimizar” um troço que é basicamente um xerox eletrônico?
Na faculdade eu penava pra entender o que o Marx queria dizer com aquele papo de “a infraestrutura
produz a superestrutura”. Mais tarde entendi e era simples e verdadeiro. A nossa maneira de agir molda
a nossa maneira de pensar. Um pescador no século 19 se relaciona com o tempo, a comida, o sexo e
as unhas dos pés de formas completamente diferentes do que um programador de vinte e dois anos,
hoje, no Vale do Silício. É evidente que existe uma ligação direta entre a placa do meu celular e a minha
placa para bruxismo. Quando meus dedos aflitos param de digitar, passam o turno pros dentes.
O supracitado alemão resumiu o que parecia ser o fim dos tempos com a frase “tudo o que é sólido
desmancha no ar”. O que diria sobre nossa época em que o próprio ar se desmancha, inundado por
dióxido de carbono, metano, óxido nitroso e sei lá mais o quê?
[...]
“Tinha que ser geral”, sugere meu velho pai, “com Biden, Merkel, China, ONU, com tudo: cinco anos
sem inventarem nada. Nada. PQP: que saudades da secretária eletrônica.”