Com a frase – Se eu não me vejo, como sei que existo? – o a...
Mesmo os pouco observadores devem ter notado um novo aparelho na temporada de férias. Tecnologia de ponta? Só no sentido mais estritamente literal.
Neste ano, o “pau de selfie”, monopé que permite tirar autorretratos, conquistou o mercado dos viajantes. Não deixará de surpreender que em pleno 2015 o homem tenha redescoberto a utilidade tecnológica de um bastão.
Na pré-história, o homem vagou pelos bosques apoiando-se nele; milhares de anos depois, a moda volta, de forma distorcida: o instrumento que servia para conectar o homem com o que estava sob seus pés – a terra – e o apoiava, literalmente, para abrir passo pelo mundo se converteu em uma ligação com o mundo superior. Se eu não me vejo, como sei que existo? Esse novo cajado nos permite uma perspectiva aérea da existência.
O filósofo alemão Peter Sloterdijk explica que aquilo que nós entendemos por tecnologia é uma tentativa de substituir os sistemas imunológicos implícitos por sistemas imunológicos explícitos.
Em nossa época, os sistemas de defesa que criamos procuram nos isolar de um exterior que se nega a ceder à tendência individualista da sociedade. Por isso andamos de um lugar a outro sem renunciar nunca a nosso mundo: nos transformamos em uma sociedade de caranguejos-eremitas, carreando no lombo nossas casas. Sentados entre centenas de passageiros, nos protegemos, com nossos fones de ouvidos, celulares e vídeos, do encontro com o exterior. Agora, o “pau de selfie” nos permite tirar fotos sem a incômoda necessidade de interagir com estranhos. Nos transformamos em seres autossuficientes e, em decorrência disso, necessariamente antissociais.
A máxima ironia do mundo globalizado é a crescente insularidade do indivíduo. Como o exterior é impessoal, nos embrenhamos no interior; como a comunidade nos debilita, a individualidade se torna preponderante; é assim que a casa familiar dá lugar ao apartamento individual – e a autogamia moderna surge.
O fenômeno do “selfie” responde a essa condição insular e por isso se arraigou como a manifestação estética da revolução digital. O isolamento do indivíduo é tal que, liberto do voyeurismo*, teve de conceber um autovoyeurismo: nos tornamos paparazzi* de nós mesmos. O “selfie” procura esconder nossa natureza isolada e solitária sob o verniz da felicidade e do gozo.
(Emilio Lezama, Paparazzi de nós mesmos. Folha de S.Paulo, 30-08-2015. Adaptado)
*Voyeurismo: forma de curiosidade mórbida com relação ao que é privativo, privado ou íntimo.
*Paparazzi: fotógrafos que perseguem celebridades, para bater
fotos indiscretas.