Sobre o poema Rios sem discurso de João Cabral de Melo Neto...
Texto I
Rios sem discurso- João Cabral de Melo Neto.
Quando um rio corta, corta-se de vez
o discurso-rio de água que ele fazia;
a água se quebra em pedaços,
poços de água, em água paralítica.
Em situação de poço, a água equivale
a uma palavra em situação dicionária:
isolada, estanque no poço dela mesma,
e porque assim estanque, estancada;
e mais: porque assim estancada, muda,
e muda porque com nenhuma comunica,
porque cortou-se a sintaxe desse río
o fio de água por que ele discorria.
O curso de um rio, seu discurso-rio,
chega raramente a se reatar de vez;
um rio precisa de muito fio de água
para refazer o fio antigo que o fez.
Salvo a grandiloquência de uma cheia
lhe impondo interina outra linguagem,
um rio precisa de muita água em fios
para que todos os poços se enfrasem:
se reatando, de um para outro poço,
em frases curtas, então frase e frase,
até a sentença-rio do discurso único
em que se tem voz a seca ele combate.
MELO NETO, João Cabral de. Antologia Poética. 7. ed. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1989.