Considere o termo sublinhado em “Ele fora o escolhido de um ...
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Ano: 2024
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
Prefeitura de Carangola - MG
Prova:
Instituto Consulplan - 2024 - Prefeitura de Carangola - MG - Agente de Combate a Endemias (ACE) |
Q3114046
Português
Texto associado
Visitante noturno
O inseto apareceu sobre a mesa como todos os insetos: sem se fazer anunciar. E sem que se atinasse por que motivo
escolhera aquele pouso. Não parecia bicho da noite, desses que não podem ver lâmpada acesa, e logo se aproximam,
fascinados. Era uma coisinha insignificante, encolhida sobre o papel e ali disposta, aparentemente, a passar o resto de sua vida
mínima, sem explicação, sem sentido para ninguém.
Ninguém? O homem, que tem o hábito de ficar altas horas entre papéis e livros, sentiu-lhe a presença e pensou
imediatamente em esmagar o intruso. Chegou a mover a mão. Não o mataria com os dedos, mas com outra folha de papel.
Deteve-se. Não seria humano liquidar aquele bichinho só porque estava em lugar indevido, sem fazer mal algum. Inseto
nocivo? Talvez. Mas sua ignorância em entomologia não lhe dava chance de decidir entre a segurança e a injustiça. E na dúvida,
era melhor deixar viver aquilo, que nem nome tinha para ele. Com que direito aplicaria pena de morte a um desconhecido
infinitamente desprovido de meios sequer para reagir, quanto mais para explicar-se?
O inseto parecia pouco ligar para ele, juiz autonomeado e algoz em perspectiva. Dormia ou modorrava, sobre a mesa
literária, indiferente, simplesmente. Chegara por acaso, sumiria daí a pouco; deixá-lo viver a seu modo, que era um viver
anônimo, desligado de inquietações humanas, invariável dentro da natureza; curto e pobre.
Uma ternura imprevista brotou no homem pelo animáculo que momentos antes pensara em destruir. Como se alguém
viesse de longe para vê-lo, fazer-lhe companhia, em sua noite de trabalho. Não conversava, não incomodava, era uma questão
apenas de estar à sua frente, imóvel, em secreta comunhão. Ele fora o escolhido de um inseto, que poderia ter voado para
outro apartamento, onde houvesse outra vigília de escrevedor de coisas, mas fora aquela a casa de sua preferência.
A menos que o acaso determinasse aquele encontro? Era possível. O inseto voara a esmo. O homem quis aferrar-se a essa
hipótese, bem plausível. Já se envergonhava de ter envolvido o estranho numa aura de sensibilidade, e talvez voltasse ao impulso
inicial de eliminação. A essa altura, espantou-se com a mobilidade de suas reações. Passava de verdugo a sentimentalão, depois
a observador cético e crítico, finalmente perdia-se na confusão das várias atitudes que podemos assumir diante de um inseto
instalado na mesa de um escritório, a uma hora que ainda não é madrugada, mas já é noite alta e de sono profundo.
Aquietou-se, afinal, na contemplação do “bicho da terra tão pequeno”. Era alguma coisa parecida com um botão marrom
rombudo, que tivesse olhos e um projeto de asas – o suficiente para deslocar-se no espaço em aventuras breves. Aquela não
era uma aventura simples: a altura do edifício exigia esforço grande para chegar da árvore até o décimo primeiro andar.
Entretanto, o botão vivo o fizera, e ali estava, tranquilo ou cansado, à mercê do gigante indeciso, que procurava entender, não
propriamente sua presença, mas a turbação íntima que essa presença despertava no gigante.
O homem não pensou em recorrer às enciclopédias para identificar o visitante. Ainda que chegasse a identificá-lo como espécie,
não avançaria muito no conhecimento do indivíduo, que era único por ser entre todos o que o visitava. E na multidão de insetos,
imagináveis e inimagináveis, só lhe interessava aquele, companheiro noturno vindo de não se sabe onde, a caminho de ignorado rumo.
Já não escrevia. Olhava. Mirava. Sentia-se também olhado e mirado, quando o inseto fez ligeiro movimento que o colocou
diretamente sob o foco de luz. Seria exagero encontrar expressão naqueles dois pontinhos negros e reluzentes, mas o fato é
que deles parecia vir para os olhos do homem um sinal de atenção ou curiosidade. E os dois, homem e inseto, assim ficaram
longo tempo, na muda inspeção, ou conversa, que não conduzia a nada.
A nada? Muitas conversas entre homens também não levam a resultado algum, mas há sempre a esperança de um
entendimento que pode vir das palavras ou de uma troca desprevenida de olhares. E o olhar pode penetrar mais fundo que as
palavras. O homem sabia disso. Mas aí notou que, sabendo falar alguma coisa, não era perito em ver diretamente o real. A
figura do inseto dizia-lhe pouco. Dos dois, talvez fosse ele, homem, o que menos habilitado se achava para uma forma de
comunicação, aquém – ou além – dos códigos tradicionais.
Distraiu-se avaliando essas limitações e, ao voltar à observação do visitante, este havia desaparecido, decepcionado talvez com a
incomunicabilidade dos gigantes. Não é todas as noites que um inseto nos visita. E, se consegue insinuar-nos alguma coisa, nunca jamais
foi captada para os homens que merecem crédito; só os ficcionistas é que costumam registrá-la, mas quem leva a sério ficcionistas?
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Boca de luar. Brasil, Editora Record, 1984.)
Considere o termo sublinhado em “Ele fora o escolhido de um inseto, [...]” (5º§). Pode-se corretamente identificar o termo sublinhado, no contexto em que se insere, como: