Em quase trinta anos atendendo doentes em cadeias,
jamais ouvi um desaforo, uma palavra áspera, uma
reivindicação mal-educada. Às vezes, fica difícil acreditar
que pessoas tão respeitosas com o médico tenham
cometido os crimes que constam de seus prontuários.
Profissão caprichosa a medicina, capaz de criar empatia
mútua entre dois estranhos em questão de minutos.
A tendência natural é a de nos aproximarmos de pessoas
da mesma classe social, com gostos, ideias, posições
políticas e estilos de vida semelhantes aos nossos. Embora
esse formato de convivência nos traga conforto, não abre
espaço para o contraditório nem dá acesso a modos de
pensar e de viver radicalmente diferentes. Impossível
imaginar como eu chegaria aos 73 anos se não fosse a
experiência nos presídios, mas sei que saberia menos
medicina e desconheceria aspectos da alma humana aos
quais só tive acesso porque me dispus a chegar perto
daqueles que a sociedade tranca atrás de grades.
O fascínio infantil pelo mundo marginal que me conduziu
ao Carandiru ainda persiste. Não faço esse trabalho
voluntário que me toma um período da semana há tantos
anos por motivações religiosas ou engajamento ideológico
de qualquer natureza — sou avesso a religiões e ideologias
—, mas porque posso dispor desse tempo e manter aceso
o interesse pela complexidade das interações humanas,
sem o qual viver perde o encanto.
(VARELLA, Drauzio. Prisioneiras. São Paulo: Companhia das
Letras, 2017, ed. Ebook.)