O texto apresenta características típicas de uma crônica jo...
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Ano: 2024
Banca:
IBPTEC
Órgão:
Prefeitura de Lagarto - SE
Prova:
IBPTEC - 2024 - Prefeitura de Lagarto - SE - Agente Auxiliar de Educação |
Q3259017
Português
Texto associado
Eu sei, mas não devia
Eu sei que a gente se acostuma.
Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamento de
fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao
redor. E porque não tem vista, logo se acostuma a não
olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se
acostuma a não abrir de todo as cortinas. E porque
não abre as cortinas, logo se acostuma a acender
mais cedo a luz. E porque à medida que se acostuma,
esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã,
sobressaltado porque está na hora.
A tomar café correndo porque está atrasado. A ler
jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da
viagem. A comer sanduíches porque já é noite. A
cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo
e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se
acostuma a abrir a janela e a ler sobre a guerra. E
aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja
números para os mortos. E aceitando os números,
aceita não acreditar nas negociações de paz. E
aceitando as negociações de paz, aceitar ler todo dia
de guerra, dos números da longa duração.
A gente se
acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone:
hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem
receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando
precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar
por tudo o que deseja e o que necessita. E a lutar para
ganhar o dinheiro com que paga. E a ganhar menos do
que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais
do que as coisas valem. E a saber que cada vez
pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar
mais dinheiro, para ter com o que pagar nas filas em
que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes, a
abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e
assistir a comerciais. A ir ao cinema, a engolir
publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado,
lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. À luz artificial de
ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz
natural. Às besteiras das músicas, às bactérias da
água potável. À contaminação da água do mar. À luta.
À lenta morte dos rios. E se acostuma a não ouvir
passarinhos, a não colher frutas do pé, a não ter
sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai
afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma
revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na
primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia
está contaminada, a gente só molha os pés e sua no
resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se
consola pensando no fim de semana. E se no fim de
semana não há muito o que fazer, a gente vai dormir
cedo e ainda satisfeito porque tem sono atrasado. A
gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para
preservar a pele.
Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para
esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida.
Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar,
se perde de si mesma.
O texto apresenta características típicas de uma
crônica jornalística, pois faz uma reflexão sobre
aspectos cotidianos da vida urbana. A estrutura
narrativa e descritiva, assim como a linguagem
acessível e direta, são características comuns desse
gênero textual. Qual das seguintes afirmações sobre
o gênero crônica é FALSA?