NÃO SOMOS FILHOS DAS COTAS! MAS
CONSTRUÍMOS ESSA POLÍTICA
Ao pensar o conceito de políticas públicas
e seu diálogo com a luta antirracista e ao recordar
as experiências acumuladas de gestores públicos,
podemos dizer: não somos filhos das cotas, mas
nossas contribuições no tema de combate ao
racismo resultaram nesta política reparatória.
De Zumbi a Oliveira Silveira, Matilde
Ribeiro e Luiza Bairros, começo esta conversa
chamando à responsabilidade os beneficiários
dessa luta. Tomar a vida como algo fácil, não
reconhecendo essa conquista como um processo
resultante de nossas ações, significa que temos o
racismo como uma espada que está sempre
presente sobre nossas cabeças, fixando limites,
impondo consequências, artimanhas, e nos
obrigando a chamar atenção para este momento
conjuntural, na perspectiva nacional e
internacional, e como tudo isso se relaciona.
Um dos pontos centrais de nossa conversa
é pensar as relações de poder, a concepção de
Estado e o desenvolvimento de políticas públicas
de promoção da igualdade racial, dar respostas a
setores da população carentes dessas políticas.
Logo, o que determina a chegada, o rumo e a
velocidade dessas políticas são os fatores e os
fatos históricos. Assim, na historicidade, devemos
buscar analisar realidades que não podem ser
contestadas, porque fatos históricos são
incontestáveis. Ninguém muda a história, ainda
que tentem sabotar e negligenciar suas
narrativas.
A propósito, foi sob a ordem de uma
legalidade colonialista que se dizimaram povos e
nações dos continentes americano e africano e,
assim, construíram o conceito eurocêntrico, de
berço e centro da humanidade. E para sustentar
esse paradigma saquearam, mataram índios e
negros em territórios africanos, nas Américas,
promovendo a diáspora negra.
Ao discorrer sobre o tema racial, que é
denso e estrutural, repenso estratégias para
abordá-lo e expressar todos os sentimentos e
sensações (dores e anseios), eu, uma pessoa
negra enraizada no Brasil, buscando encontrar o
meu local de fala, como brasileiro, um homem
negro, periférico e vinculado a vários
determinantes sociais que influenciam nossas
vidas diariamente, como corpos andantes em
uma sociedade capitalista e ainda com forte
legado escravocrata, e que colaboram para
situações que muitos não conseguem
compreender. Mas, com tudo isso, tento produzir
e transmitir conhecimentos para a construção de
um debate e de uma luta antirracista, para os
quais precisamos acionar muitos mecanismos.
Com esse entendimento, queremos
mostrar como a ausência dessas políticas públicas
reparadoras e de promoção da igualdade racial
contribui para um processo de embranquecimento – entendendo que muitos
símbolos são estruturados em uma ideologia que
tem afetado a população negra – e, baseado
nesse diagnóstico, desconstruir estereótipos e
arquétipos negativos, mudando essa estrutura
racista que tem atingido, psicologicamente, um
processo de coisificação e embranquecimento de
nossos corpos. Essas situações e processos são
resultado de uma ideologia que está nas
entranhas de nossa sociedade, nas ações
estruturantes da gestão de políticas
governamentais em todas as esferas.
Encontramos traços marcantes dela nos
currículos da formação, nas políticas públicas
voltadas para educação, saúde, economia,
habitação… Geralmente, como militantes e
movimentos, pensamos em formular diversas
políticas com recorte racial, mas, como gestores,
esquecemos de propor mudanças nas formações
dos profissionais. Em todas áreas e níveis do
funcionalismo público dá-se pouca ênfase a isso.
Nesse sentido, chamamos atenção para
este processo de formação de novos quadros
políticos sociais no movimento negro e fora dele,
porque, como já falamos, não basta combatermos
o racismo, temos que procurar agir de forma
antirracista e reconstruir uma ideologia de
identidade negra. Ao longo da história, nossa
identidade foi sendo desconstruída e, por mais
que antropologicamente se diga que a origem do
mundo foi em território africano, mesmo assim,
muitos legados foram historicamente negados no
reconhecimento de nossa ancestralidade.
A frase “(…) tento produzir e
transmitir conhecimentos para a construção de
um debate e de uma luta antirracista (…)” está na
1ª pessoa do singular. Passando-a para a 2ª
pessoa do singular da norma-padrão da língua
portuguesa, teremos: