A memória vegetalDesde os tempos em que a espécie começava a...

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Ano: 2011 Banca: NC-UFPR Órgão: Prefeitura de Matinhos - PR
Q1200003 Português
A memória vegetal
Desde os tempos em que a espécie começava a emitir seus primeiros sons significativos, as famílias e as tribos precisaram dos velhos. Talvez, antes, eles não tivessem utilidade e fossem descartados, quando já não serviam para encontrar comida. Mas, com a linguagem, os velhos se tornaram a memória da espécie: sentavam-se na caverna, ao redor do fogo, e contavam o que  havia acontecido (ou que se dizia haver acontecido, aí está a função dos mitos) antes de os jovens nascerem. Antes de começar-se a cultivar essa memória social, o homem nascia sem experiência, não tinha tempo de fazê-la e morria. Depois, um jovem de vinte anos era como se tivesse vivido cinco mil. Os fatos ocorridos antes dele, e aquilo que os anciãos haviam aprendido, passavam a fazer parte de sua memória. [...]
Mas, com a invenção da escrita, assistimos ao nascimento de uma memória mineral. Digo mineral porque os primeiros signos foram gravados em tabuinhas de argila ou esculpidos sobre pedra; porque faz parte da memória mineral também a arquitetura, visto que, das pirâmides egípcias às catedrais góticas, o templo era também o registro de números sacros, de cálculos matemáticos, e por intermédio de suas imagens ou de suas pinturas transmitia histórias, ensinamentos morais; em suma, constituía, como já foi dito, uma enciclopédia em pedra. [...]
Mas, com a invenção da escrita, nasceu pouco a pouco o terceiro tipo de memória, que decidi denominar vegetal porque, embora o pergaminho fosse feito com pele de animais, o papiro era vegetal e, com o advento do papel (desde o século XII), produzem-se livros com trapos de linho, cânhamo e algodão. O livro, sob qualquer forma, permitiu que a escrita se personalizasse: representava uma porção de memória, até coletiva, mas selecionada segundo uma perspectiva pessoal. Diante do livro, procuramos uma pessoa, um modo individual de ver as coisas. Não procuramos apenas decifrar, mas também interpretar um  pensamento, uma intenção. Em busca de uma intenção, interroga-se um texto, do qual se podem até fazer leituras diferentes. A leitura se torna um diálogo, mas um diálogo – e este é o paradoxo do livro – com alguém que não está diante de nós, que desapareceu talvez há séculos, e que está presente só como escrita. Existe uma interrogação dos livros (chama-se hermenêutica), e se existe hermenêutica existe culto do livro. As três grandes religiões monoteístas – judaísmo, cristianismo e islamismo – desenvolvem-se sob a forma de interrogação contínua de um livro sagrado. O livro se torna a tal ponto símbolo da verdade por ele guardada, e revelada a quem souber interrogá-lo, que para encerrar uma discussão, afirmar uma tese, destruir um adversário, diz- se: “Está escrito aqui”. Sempre duvidamos de nossa memória animal – “creio lembrar que... mas não tenho certeza” –, enquanto a  memória vegetal pode ser exibida para eliminar toda dúvida: “A água é de fato H2O. Napoleão morreu realmente em Santa Helena, quem o diz é a enciclopédia”. [...]
(ECO, Umberto. A memória vegetal e outros escritos sobre bibliofilia. Rio de Janeiro: Record, 2010, p. 15-16.)
Segundo o texto, é correto afirmar que :
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