Se a ciência é feita por humanos e eles falham, como confiar nela?
Em agosto de 2021, a Agência Federal de Saúde dos Estados Unidos, a
FDA (Food and Drug Administration), postou um tuíte inusitado, mesclando humor
e desespero: “Você não é um cavalo. Você não é uma vaca. Sério, pessoal. Parem
com isso”. O tuíte trazia o link para uma página da FDA explicando por que não se
devia usar ivermectina para o tratamento da COVID-19.
A razão do apelo era simples: muita gente estava tomando o medicamento
de uso veterinário, mesmo com as dezenas de alertas sobre efeitos colaterais em
humanos e falta de eficácia comprovada. Verdadeira febre em diversos países, a
corrida por esse remédio começou a partir de estudos cheios de vieses e erros
metodológicos, tendo sido agravada pelo modo como a ciência é transmitida para
a sociedade.
O caso da ivermectina é apenas um exemplo da pandemia de desinformação que confunde as pessoas e desafia a credibilidade da ciência. O modo como
o processo científico opera não costuma ser ensinado nas escolas nem divulgado
amplamente nas mídias. Longe da visão clássica do cientista fazendo uma única
descoberta que mudará o mundo, os pesquisadores trabalham em equipes que
desenvolvem hipóteses, e essas hipóteses são testadas em experimentos que não
raro chegam a resultados contraditórios.
Muitas vezes, só a repetição dos experimentos em contextos diferentes
ajuda a formar um consenso científico sobre determinado tema. Além disso, se a hipótese não for corretamente formulada, se os experimentos não forem bem conduzidos, e se as análises forem enviesadas, teremos resultados que não refletem
a realidade. Infelizmente, parte da produção científica se constitui de artigos desenvolvidos nesses moldes, o que só aumenta a confusão.
Cientistas são seres humanos passíveis de cometer erros – algo que é
compreendido e analisado no processo científico. E é justamente por isso que resultados submetidos a revistas científicas são primeiramente avaliados por outros
cientistas da área. Isso não impede a ocorrência de erros, já que os avaliadores
também não são imunes a eles, mas pode funcionar como uma peneira, em maior
ou menor grau.
E aí entra outro complicador: existem revistas científicas que não são motivadas pela qualidade e impacto dos achados, mas pelos lucros financeiros, com
pouco ou nenhum escrutínio dos resultados – é a chamada revista predatória. Pesquisadores podem acabar escrevendo para essas revistas por desconhecimento
ou de forma proposital, já que as métricas tradicionais de desempenho acadêmico
levam em conta a produtividade: quanto mais artigos publicados, mais chances de
evolução na carreira.
Se a avalição do grau de confiabilidade de artigos e revistas científicas já
é uma tarefa difícil mesmo para equipes de cientistas íntegros e bem treinados,
como garantir que pessoas alheias ao ambiente acadêmico consigam diferenciar
artigos bons e ruins? E mais: como garantir que uma questão complexa ou uma
decisão de saúde pública não se fundamente em apenas um único artigo?
Enquanto a ciência é dinâmica e movida pela contestação, as pessoas
querem respostas rápidas e simples para perguntas complicadas: ovo faz bem ou
faz mal? Qual o melhor remédio para COVID-19? É fácil encontrar respostas pontuais em meio aos milhares de artigos científicos publicados todos os anos, mas o
que de fato importa é chegar às explicações mais adequadas com base na análise
das melhores evidências disponíveis.
Não é incomum, porém, que se use a ciência para reforçar um ou outro
lado de interesse. É o que chamamos de cherry picking, uma alusão ao ato de
colher as cerejas maiores e mais vermelhas, na tentativa de afirmar que todas as
cerejas existentes são assim.
Mostrar apenas as pesquisas que nos interessam e descaracterizar estudos promove pseudociências e fortalece o negacionismo e determinadas agendas
políticas, confundindo ainda mais a população. O uso distorcido de evidências interfere em tomadas de decisões governamentais e põe em risco o bem-estar mundial, uma vez que constitui uma ameaça à saúde pública.
A ciência é a mais eficiente estratégia humana para conhecer o mundo e
deve seguir projetando confiança, mesmo reconhecendo que opera num certo grau de incerteza e com inúmeros desafios. Tornar as nuances acadêmicas cada vez
mais conhecidas da sociedade ajudará a entender que conclusões definitivas não
são simples e que, muito além do apego a um artigo de forma isolada, o apoio e a
confiança nos processos científicos nos ajudarão a chegar às melhores respostas
e soluções para a humanidade.
(SOLETTI, Rossana. Se a ciência é feita por humanos e eles falham, como confiar nela? Folha de S. Paulo, São Paulo, 29 jun. 2023. Blog Ciência Fundamental.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/blogs/ciencia-fundamental/2023/06/se-a-ciencia-e-feita-por-humanos-e-eles-falham-como-confiarnela.shtml).