Todo escritor convive com um terror permanente: o do erro de revisão. O revisor é a
pessoa mais importante na vida de quem escreve. Ele tem o poder de vida ou de morte
profissional sobre o autor. A inclusão ou omissão de uma letra ou vírgula no que sai impresso
pode decidir se o autor vai ser entendido ou não, admirado ou ridicularizado, consagrado ou
processado. Todo texto tem, na verdade, dois autores: quem o escreveu e quem o revisou. Toda
vez que manda um texto para ser publicado, o autor se coloca nas mãos do revisor, esperando
que seu parceiro não falhe. Não há escritor que não empregue palavras como, por exemplo:
“ônus” ou “carvalho” e depois fique metaforicamente de malas feitas, pronto para fugir do país
se as palavras não saírem impressas como no original, por um lapso do revisor. Ou por
sabotagem.
Sim, porque a paranoia autoral não tem limites. Muitos autores acreditam firmemente que
existe uma conspiração de revisores contra eles. Quando os revisores não deixam passar erros
de composição (hoje em dia, de digitação), fazem pior: não corrigem os erros ortográficos e
gramaticais do próprio autor, deixando-o entregue às consequências dos seus próprios pecados
de concordância, das suas crases indevidas e pronomes fora do lugar. O que é uma ignomínia.
Ou será ignomia? Enfim, não se faz.
Pode-se imaginar o que uma conspiração organizada, internacional, de revisores
significaria para a nossa civilização. Os revisores só não dominam o mundo porque ainda não
se deram conta do poder que têm. Eles desestabilizariam qualquer regime com acentos
indevidos e pontuações maliciosas, além de decretos oficiais ininteligíveis. Grandes jornais
seriam levados à falência por difamações involuntárias, exércitos inteiros seriam imobilizados
por manuais de instrução militar sutilmente alterados, gerações de estudantes seriam
desencaminhadas por cartilhas ambíguas e fórmulas de química incompletas. E os efeitos de
uma revisão subversiva na instrução médica são terríveis demais para contemplar.
Existe um exemplo histórico do que a revisão desatenta – ou mal-intencionada – pode
fazer. Uma das edições da Versão Autorizada da Bíblia publicada na Inglaterra por iniciativa
do rei James I, no século XVII, ficou conhecida como a “Bíblia Má”, porque a injunção “Não
cometerás adultério” saiu, por um erro de impressão, sem o “não”. Ninguém sabe se o volume
de adultérios entre os cristãos de fala inglesa aumentou em decorrência dessa inesperada sanção
bíblica até descobrirem o erro, ou se o impressor e o revisor foram atirados numa fogueira
juntos, mas o fato prova que nem a palavra de Deus está livre do poder dos revisores.
A mesma bíblia do rei James serve como um alerta (ou como o incentivo, dependendo de
como se entender a história) para a possibilidade que o revisor tem de interferir no texto. O
objetivo de James I era fazer uma versão definitiva da Bíblia em inglês, com aprovação real,
para substituir todas as outras traduções da época, principalmente as que mostravam uma certa
simpatia republicana nas entrelinhas como a Bíblia de Genebra, feita por calvinistas e adotada
pelos puritanos ingleses, e que é a única Bíblia da História em que Adão e Eva vestem calções.
Para isso, James reuniu um time dividido entre os que cuidariam do Velho e do Novo
Testamento, das partes proféticas e das partes poéticas, etc. Especula-se que as traduções dos
trechos poéticos teriam sido distribuídas entre os poetas praticantes da época, para revisarem e,
se fosse o caso, melhorarem, desde que não traíssem o original. Entre os poetas em atividade na
Inglaterra de James I estava William Shakespeare. O que explicaria o fato de o nome de
Shakespeare aparecer no Salmo 46 – “shake” é a 46ª palavra do salmo a contar do começo,
“speare” a 46ª a contar do fim. Na tarefa de revisor, e incerto sobre a sua permanência na
História como sonetista ou dramaturgo, Shakespeare teria inserido seu nome clandestina e
disfarçadamente numa obra que sem dúvida sobreviveria aos séculos. (Infelizmente, diz
Anthony Burgess, em cujo livro “A mouthful of air” a encontrei, há pouca probabilidade de
esta história ser verdadeira. De qualquer maneira, vale para ilustrar a tentação que todo revisor
deve sentir de deixar sua marca, como grafite, na criação alheia.)
Não posso me queixar dos revisores. Fora a vontade de reuni-los em algum lugar, fechar a
porta e dizer “Vamos resolver de uma vez por todas a questão da colocação das vírgulas,
mesmo que haja mortos”, acho que me têm tratado bem. Até me protegem. Costumo atirar os
pronomes numa frase e deixá-los ficar onde caíram, certo de que o revisor os colocará no lugar
adequado. Sempre deixo a crase ao arbítrio deles, que a usem se acharem que devem. E jamais
uso a palavra “medra”, para livrá-los da tentação.
VERÍSSIMO, Luís Fernando. Cuidado com os revizores. VIP Exame, mar. 1995, p. 36-37.
Para o autor do TEXTO , o poder dos revisores é imenso, pois