No excerto “Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito...
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Ano: 2025
Banca:
Instituto Consulplan
Órgão:
Câmara de Araraquara - SP
Prova:
Instituto Consulplan - 2025 - Câmara de Araraquara - SP - Agente Administrativo |
Q3216165
Português
Texto associado
Texto para responder à questão.
Eu deveria cantar.
Rolar de rir ou chorar, eu deveria, mas tinha desaprendido essas coisas. Talvez então pudesse acender uma vela, correr
até a igreja da Consolação, rezar um Pai Nosso, uma Ave Maria e uma Glória ao Pai, tudo que eu lembrava, depois enfiar algum
trocado, se tivesse, e nos últimos meses nunca, na caixa de metal “Para as Almas do Purgatório”. Agradecer, pedir luz, como
nos tempos em que tinha fé.
Bons tempos aqueles, pensei. Acendi um cigarro. E não tomei nenhuma dessas atitudes, dramáticas como se em algum
canto houvesse sempre uma câmera cinematográfica à minha espreita. Ou Deus. Sem juiz nem plateia, sem close nem zoom,
fiquei ali parado no começo da tarde escaldante de fevereiro, olhando o telefone que acabara de desligar. Nem sequer fiz o
sinal da cruz ou levantei os olhos para o céu. O mínimo, suponho, que um sujeito tem a obrigação de fazer nesses casos, mesmo
sem nenhuma fé, como se reagisse a uma espécie de reflexo condicionado místico.
Acontecera um milagre. Um milagre à toa, mas básico para quem, como eu, não tinha pais ricos, dinheiro aplicado, imóveis,
nem herança e apenas tentava viver sozinho numa cidade infernal como aquela que trepidava lá fora, além da janela ainda
fechada do apartamento. Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito a visão ou erguer-se da cadeira de rodas com o
semblante beatificado e a leveza de quem pisa sobre as águas. Embora a miopia ficasse cada vez mais aguda e os joelhos
tremessem com frequência, não sabia se fome crônica ou pura tristeza, meus olhos e pernas ainda funcionavam razoavelmente.
Outros órgãos, verdade, bem menos.
Toquei o pescoço. E o cérebro, por exemplo.
Já chega, disse para mim mesmo, parado nu no meio da penumbra gosmenta do meio-dia. Pense nesse milagre, homem.
Singelo, quase insignificante na sua simplicidade, o pequeno milagre capaz de trazer alguma paz àquela série de solavancos sem
rumo nem ritmo que eu, com certa complacência e nenhuma originalidade, estava habituado a chamar de minha vida, tinha
um nome. Chamava-se – um emprego.
(ABREU, Caio Fernando. Onde andará Dulce Veiga? São Paulo: Planeta De Agostini, 2003, p. 11-12.)
No excerto “Nada muito sensacional, tipo recuperar de súbito a visão ou erguer-se da cadeira de rodas com o semblante
beatificado e a leveza de quem pisa sobre as águas.” (4º§), os termos grifados têm sua classificação morfológica corretamente assinalada em: