Atenção: Considere a crônica “Tartaruga de arrastão”, de Rachel de Queiroz, para responder à questão..
O caso deu-se aqui na ilha, numa pescaria de arrastão. Da primeira redada veio um tal peixe que causou
espanto: ninguém podia crer que naquele côncavo de mar morasse tanto peixe assim. Havia de ser alguma
piracema que ia passando; para lá de trés toneladas de pescado foram apanhadas de uma só vez. Na segunda
redada nada veio, ou quase nada — fugira a piracema ou fora toda colhida pela rede. Entretanto, no meio
daquele quase nada apareceu um bicho estranho: uma tartaruga do mar. Tartaruga diferente daquelas fluviais
que a gente conhece, tartaruga das profundezas salinas, meio peixe, porque em vez de pernas tem nadadeiras.
Primeiro ela se debateu e tentou de todas as maneiras furar a malha. Depois foi agarrada e atirada
ignominiosamente na areia, de barriga para cima. Por fim puseram-na em posição normal; e ela, recuperando
imediatamente a compostura, estirou o pescoço enrugado e correu em torno de si um olho temeroso. Não sei
se os presentes compreenderam quanto havia de surpresa, terror e pasmo nos olhos da tartaruga. Muito pior
que um bicho da terra pego numa rede: este pode estranhar a prisão, mas afinal continua dentro de um
elemento conhecido, pisando chão, vendo árvores familiares, sentindo o cheiro da terra. A tartaruga não: para
ela, nascida e vivida no mar, aquela era a mais estranha, a mais inacreditável e terrível das aventuras. Para
aquela tartaruga era o mesmo que seria para um de nós vermo-nos transportados subitamente, sem dano
físico, até o fundo do mar. Imagine que estranho, que portentoso e medonho não parece. As caras
desconhecidas de ignorados animais - no caso, homens. E todos, todos, canibais ou pior que isso — pois bem
sentia ela sobre o seu casco grosso, sobre a carapaça encaracada, o olhar doce e atento e cobiçoso dos
comedores de carne.
A sorte da coitada foi ninguém chegar a um acordo sobre a forma de abatê-la. E sorte maior o fato de
ninguém, pessoalmente, querer se responsabilizar pela carnificina naquela quinta-feira santa. Mas levaram-na
para o galinheiro - que ignominia, uma veterana dos sete mares a ser atirada entre as galinhas, na noite que
deveria ser a última da sua vida; ela que decerto esperava sepultar-se entre areias claras, nalgum maciço
colorido de anêmonas do mar. Mas felizmente para a tartaruga, incerto é o coração do homem, incertos, os
seus impulsos. Tanto val para um lado como para o outro, tanto procura devorar hoje o seu irmão bicho, como
amanhã o festeja e liberta. O fato é que um coração se apiedou da tragédia e houve mão que abriu a porta da
capoeira e encaminhou a marcha rampante do bicho marinho em direção da prala, em direção do mar, sua
pátria. Ela também não esperou arrependimento, não hesitou, não agradeceu. Cortou a areia deixando um
rastro longo, penetrou na água como um barco a deslizar do estaleiro, mergulhou, emergiu, voltou a cabeça
ainda assustada para aquele mundo sujo, escuro, inimigo, onde viviam os homens, onde esperava nunca mais
voltar; e mergulhou de novo, abraçando toda a água que podia entre as nadadeiras abertas.
(Adaptado de: QUEIROZ, Rachel de. 100 crônicas escolhidas: um alpendre, uma rede, um açude. Rio de
Janeiro: José Olympio, 2021)