A questão refere-se ao texto a seguir.
As cordilheiras de cada um
Paloma Oliveto
Algumas histórias são contadas várias vezes em família, despertando o mesmo interesse em quem
as escuta. Desde criança, ouvi, sempre com espanto, minha mãe narrar a improvável odisseia de jovens
atletas uruguaios que se acidentaram nos Andes chilenos. Para sobreviver, tiveram de comer os cadáveres
dos que sucumbiram à queda do avião.
Na nossa narrativa doméstica, o roteiro era acrescido dos enjoos que a notícia provocou na minha
mãe, grávida de quatro meses. Um programa de televisão exibiu, com destaque, a foto de uma perna, metade
comida. Para uma gestante com idade próxima à dos garotos, aquela história foi marcante não só pela
compaixão despertada, mas pelas terríveis náuseas que a acompanharam até o nascimento da minha irmã.
Fenômeno de audiência na Netflix e nos cinemas, o filme A Sociedade da Neve reconta o trágico
acidente de avião sofrido pelo time de rúgbi Old Christians, no fim de 1972. Em vez de optar pelo
sensacionalismo, o diretor espanhol Juan Antonio Bayona conquistou o público ao retratar a coragem e a
dignidade daqueles jovens, que fizeram um pacto de solidariedade: "Se eu morrer, pode se alimentar do meu
corpo".
O filme de Bayona segue o roteiro do livro homônimo do jornalista uruguaio Paulo Vierci, que intercala
os detalhes dos 72 dias que se seguiram à queda do avião com o comovente depoimento de cada um dos
que voltaram dos Andes. Tudo, nas 435 páginas, impressiona. Mas, para além da epopeia em si, é impactante
a compreensão, por parte dos sobreviventes, de que nenhuma dor deve ser minimizada, e que a nossa não
é maior do que a de ninguém. "Todos atravessam sua própria cordilheira", diz o cardiologista Roberto
Canessa, responsável, na época, por convencer os colegas a recorrer à antropofagia.
Em seu depoimento a Vierci, o empresário Carlitos Páez conta que, quando chegou em casa, a mãe
revelou, em tom dramático, que nossa cachorrinha chihuahua tinha morrido. Na hora, estranhou: ora, não
tinha ele perdido 29 amigos? Páez, porém, não estava se desfazendo do sentimento da mãe. Ao contrário:
"O que me levou a compreender que prazer e dor são relativos e subjetivos, que não existe um 'dorímetro'
nem um 'angustiômetro' para medir o sofrimento".
Há 11 anos, minha mãe morreu, três meses depois do falecimento do meu pai. Uma de suas últimas
referências à tragédia dos Andes foi comparar os enjoos do tratamento agressivo com as náuseas dos tempos
do acidente aéreo. Algumas semanas antes de ela ser internada pela última vez, um amigo me contava o
quanto estava triste pelo fim do namoro. No meio da conversa, pediu desculpas e disse que aquilo não tinha
importância. Como se estivéssemos comparando nossos "dorímetros"...
Temos de respeitar a travessia de cada um. Algumas podem parecer mais acidentadas, mas, para
quem as enfrenta, a dificuldade é a mesma. Ao sobreviver a um inverno rigoroso, à fome e ao dilema ético de
comer os corpos dos amigos, 16 jovens uruguaios deixam uma importante lição, além da resiliência: a pior
cordilheira é aquela da qual tentamos sair.
Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/opiniao/2024/04/6828529-as-cordilheiras-de-cada-um.html [Adaptado]