É tempo de pós-amor
Cansei de amor! Quantos filmes, entrevistas, artigos, livros sobre amor cruzaram seu caminho ultimamente? Em uma
semana, assisti a um vídeo, vi um filme, li meio livro e participei de um debate na televisão. Tudo sobre amor. E ouvi as pessoas
– provavelmente também eu própria – dizerem coisas pertinentes e bem ditas que, de tão pertinentes e repetidas, já se
tornaram chavões comportamentais, e parecem fichas de computador dissecadas de qualquer verdade emocional. E de repente
está me dando uma urticária na alma, um desconforto interno que em tudo se assemelha à indigestão.
Estamos fazendo com o amor o que já fizemos com o sexo. Na década passada parecia que tínhamos reinventado o sexo.
Não se pensava, não se falava, não se praticava outro assunto. Toda a nossa energia pensante, todo o nosso esforço vital
pareciam concentrados na imensa cama que erguíamos como única justificativa da existência humana. Transformamos o sexo
em verdade. Adoramos um novo bezerro de ouro.
Mas o ouro dos bezerros modernos é de liga baixa, que logo se consome na voracidade da mass media. O sexo não nos
deu tudo o que dele esperávamos, porque dele esperávamos tudo. E logo a sociedade começou a olhar em volta, à procura de
um outro objeto de adoração. Destronado o sexo, partiu-se para a grande festa de coroação do amor.
Agora, aqui estamos nós, falando pelos cotovelos, analisando, procurando, destrinchando. E desgastando. Antes, quando
eu pensava numa conversa séria, direita, com a pessoa que se ama, sabia a que me referia. Mas agora, quando ouço dizer que
“o diálogo é fundamental para a manutenção dos espaços”, não sei o que isso quer dizer, ou melhor, sei que isso não quer dizer
mais nada. Antes, quando eu pensava ou dizia que amor é fundamental, tinha a exata noção da diferença entre o fundamental
e o absoluto. Mas agora, quando eu ouço repetido de norte a sul, como num gigantesco eco, que “a vida sem amor não tem
sentido”, fico com a impressão de estar ouvindo um slogan publicitário e me retraio porque sei que estão querendo me impor
um produto.
A vida sem amor pode fazer sentido, e muito. É bom que a gente recomece a dizer isso. Mesmo porque há milhões de
pessoas sem amor, que viveriam bem mais felizes se de repente a voz geral não lhes buzinasse nos ouvidos que isso é impossível.
O mundo só andou geometricamente aos pares na Arca de Noé. Fora disso, anda emparelhado quem pode, quando pode. E o
resto espera uma chance, sem nem por isso viver na escuridão.
Antes que se frustrem as expectativas, como aconteceu com o sexo, seria prudente descarregar o amor, tirar-lhe dos
ombros a responsabilidade. Ele não pode nos dar tudo. Nada pode nos dar tudo. Porque o tudo não existe. O que existe são
parcelas, que, eternamente somadas e subtraídas, multiplicadas e divididas, nos aproximam e afastam do tudo. E a matemática
dessas parcelas pode ser surpreendente: quando, como está acontecendo agora, tentamos agrupá-las todas em cima de uma
única parcela – o amor –, elas não se somam, pelo contrário, se fracionam, causando o esfacelamento da parcela-suporte.
Amor criativo é ótimo, dizem todos. E é verdade. Mas melhor ainda é pegar uma parte da criatividade que está concentrada
no amor, e jogá-la na vida. Solta, ela terá possibilidades de contaminar o cotidiano, permear a vida toda e voltar a abastecer o
amor, sem deixar-se absorver e esgotar por ele. Dedicar-se à relação é importante, dizem todos. E é verdade. Mas qualquer um
de nós tem inúmeras relações, de amizade, vizinhança, sociais, e anda me parecendo que concentrar toda a dedicação na
relação amorosa pode custar o empobrecimento das outras.
Sim, o amor é ótimo. Porém acho que vai ficar muito melhor quando sair do foco dos refletores e passar a ser vivido com
mais naturalidade. Quando readquirirmos a noção de que não é mais vital do que comer e banhar o corpo em água fria nem
mais tranquilizador do que ter amigos e estar de bem com a própria cara. Quando aceitarmos que não é o sal da terra, simplesmente porque
a terra é seu próprio sal, e é ela que dá sabor ao amor.
(COLASANTI, Marina. 1937- Eu sei, mas não devia. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.)