Carlos Drummond de Andrade,
Itabira e a Mineração
Em julho de 2014 o acaso me levou a Itabira, onde eu
nunca tinha estado. A viagem teve efeitos inesperados, que desembocam neste livro: na cidade natal de
Carlos Drummond de Andrade as marcas do passado,
assim como sinais contemporâneos gritantes, pareciam estar chamando, todos juntos, para uma releitura
da obra do poeta. A estranha singularidade do lugar
incitava a ir mais fundo na relação do autor de “A
máquina do mundo” com as circunstâncias que envolvem a “estrada de Minas, pedregosa”, a geografia física
e humana, a história da mineração do ferro.
Nascido em 1902, Drummond viveu pouco tempo
em Itabira. Mas os ecos da cidade retornam em sua
obra inteira, e permanecem nela qual uma inscrição
latejante, sem correspondente cronológico contabilizável – como a tal “fotografia na parede”, que dói,
ou como um sino repercutindo traumas e avivando
o vivido. José Maria Cançado, seu primeiro biógrafo,
diz, a propósito, que ali o “mundo não se assemelha
nem à natureza nem à cultura, mas a uma terceira
coisa entre os dois, uma espécie de grande alucinação,
uma monstruosidade geológica, uma dissonância
planetária, com sua quantidade astronômica de minério”. A imagem não é despropositada, por mais que
possa parecer. Chegar a esse lugar é sentir, de fato, o
impacto da geologia e da história, acopladas. Algo de
alucinado se passou e se passa naquele sítio, implicando uma torção desmedida entre a paisagem e a
máquina mineradora, com quantidades monstruosas
de ferro envolvidas. Há no ar a sensação de que um
crime não nomeado, ligado à fatalidade de um “destino mineral”, foi cometido a céu aberto.
O grande buraco geral que a mineração cavou no
território de Minas, multiplicado por outras tantas
Itabiras e Itabiritos, e que em Belo Horizonte fez
da serra do Curral uma paisagem de fachada que
esconde uma ruína mineral, está exposto em Itabira
de maneira exemplar e obscena, de tão real e tão
próximo. Em outras palavras, se o horizonte de Belo
Horizonte é sustentado hoje por uma espécie de telão
montanhoso, mera película residual preservada por
conveniência – afinal, é dele que a capital do estado
extrai seu nome –, em Itabira a exploração mineradora
sentiu-se à vontade para abolir a serra e anular o horizonte sem maior necessidade de manter as aparências.
Impossível não associar tal visão à catástrofe de
Mariana e do rio Doce, desencadeada em 5 de novembro de 2015, desvelando uma nova dimensão desse
todo. Em Mariana, a derrama dos rejeitos, empilhados
como um castelo de cartas em barragens a montante, apoiando-se a si mesmas sem outros critérios
a não ser o da acumulação sem freios, pela empresa
Samarco, braço da atual Vale, cobrou seu tributo às
comunidades e a todos os reinos da natureza em vidas
e em destruição, no distrito de Bento Rodrigues e em
tudo que se estende pelo rio Doce até o mar.
Associar os acontecimentos de Itabira e de Mariana
não significa equipará-los – um é efeito do lento
desenrolar de uma exploração que opera em surdina
ao longo de décadas, de modo crônico, localizado e
praticamente invisível na cena pública nacional; outro
eclode súbito e estrondoso, esparramado no espaço
e reconhecido imediatamente como uma das maiores
hecatombes socioambientais do país, desmascarando
a pulsão destrutiva da sanha extrativa e acumuladora.
Embora diferentes, o acontecimento catastrófico de
Mariana, com tudo que tem de fragoroso e letal, pode
ser visto como o raio que ilumina o que há de silencioso e invisível na catástrofe de Itabira.
WISNIK, José Miguel. Disponível em: <http://www.viladeutopia. com.br/o-poeta-e-a-pedra>. Acesso em 18 de fevereiro de 2019. [Adaptado].
Obs.: Wisnik é autor do livro “Maquinação do mundo: Drummond e
a mineração”.