Os dentes dos pobres
por Olivier Cyran
Em 1970, um jovem dentista de Autun, bafejado pelos ventos do Maio de 68, se lançou em um projeto
audacioso: abrir, em Saône-et-Loire, um consultório destinado aos pobres. Bernard Jeault conseguiu obter
um empréstimo bancário e aliciar para a aventura quatro colegas, prontos como ele a trair o evangelho de
sua profissão: a prática liberal e o sucesso material. Trabalhariam juntos, com o mesmo equipamento e por
um valor modesto. Adeus vida de figurões convidados para os saraus do subprefeito: socialização dos
cuidados e bons dentes para todos!
No entanto, a Ordem Nacional dos Cirurgiões-dentistas velava por seus interesses. Hostis à ideia de
um atendimento com vocação social e temendo que essa subversão do modelo sacrossanto do pequeno
empresário dentista abrisse uma brecha capaz de abalar todo o sistema, os sabichões travaram contra Jeault
uma longa e implacável guerra. Arruinado, depois proibido de exercer a profissão em represália a uma obra
em que relatava seus desenganos com os “arrancadores de dentes”, o “dentista dos pobres” amargou o
desemprego, a assistência social e uma velhice com dificuldades, antes de morrer, em julho de 2019.
Cinquenta anos após seu torpedeado projeto, as desigualdades de acesso aos serviços que ele
esperava proporcionar continuam abissais. Os estragos podem ser observados desde a mais tenra idade.
Segundo levantamentos de saúde escolar em cursos pré-primários da França, um quarto dos filhos de
operários tem cáries não cuidadas, contra apenas 4% dos filhos de executivos, disparidade que aumenta na
idade adulta. Estima-se que mais de um quarto dos casais de baixa renda não vai ao dentista por falta de
meios. Como reconhecia o ministro da Saúde em 2011, “as desigualdades constatadas se traduzem, de um
lado, por uma exposição desigual ao risco: os hábitos favoráveis à saúde bucodentária (escovação diária,
exposição aos fluoretos, alimentação variada) são mais disseminados entre a população beneficiada por um
melhor nível de educação e renda; de outro, um recurso também desigual aos tratamentos: os executivos
consultam mais frequentemente o cirurgião-dentista que as categorias sociais pouco qualificadas”.
Fraco consolo para os desfavorecidos do sistema francês, condenados a dores atrozes, a dificuldades
de mastigação ou a um sorriso murcho que sabota sua vida amorosa, social e profissional: o fardo que
carregam é largamente partilhado no mundo inteiro.
Embora afetem milhões de pessoas e gerem sofrimentos consideráveis, essas desigualdades são
muitas vezes negadas ou minimizadas. Os próprios dentistas repisam de bom grado o refrão, ventilado nas
campanhas preventivas, segundo o qual a saúde dentária é essencialmente um problema de responsabilidade
individual. Para ter uma dentição sadia, cabe a cada um respeitar as regras de higiene preconizadas desde o
berço, seguir um regime alimentar equilibrado, evitar os doces, o álcool, o fumo e as drogas, não se expor ao
cassetete do policial nem ao punho do marido violento – levar, em suma, uma existência virtuosa e protegida.
Do contrário, a culpa será sua se seus dentes se estragarem.
O sistema francês de cuidados dentários repousa em dois princípios: por um lado, a primazia do
modelo liberal, que exige do profissional tirar o máximo de seu investimento; por outro, a organização de uma
oferta de serviços de duas vias, na qual as intervenções reembolsadas a preço de “assistência social”,
disponíveis para os pacientes modestos, rivalizam com as intervenções sem limite de preços, infinitamente
mais lucrativas, como os implantes e as próteses. Entre o juramento que ele faz no primeiro dia de sua carreira
– “Cuidarei do indigente e de quem quer que procure meus serviços” – e a tentação de privilegiar os clientes
de alto valor agregado, o dentista se vê diante de um dilema que está pouco interessado em deslindar no
interesse da saúde pública.
Sem dúvida, a atração do ganho tem aí seu papel. Não é por acaso que, no jargão dos especialistas
europeus em evasão fiscal, “o investidor privado que cruza a fronteira com seu dinheiro escuso para aplicá-lo em um ambiente fiscal mais favorável é conhecido como dentista belga” – uma homenagem à profissão,
não à bandeira. A sede de euros acentua a repugnância por aqueles que não os têm. No fim de 2018, o
Defensor dos Direitos (uma autoridade independente francesa de defesa dos direitos dos cidadãos)
conclamou as plataformas de marcação de consultas on-line, como a Doctolib, a bloquear em seus sites
menções abertamente discriminatórias feitas por numerosos dentistas, como “os beneficiários da CMU
(Cobertura Médica Universal) não serão aceitos no consultório”. A recusa de cuidados – aos beneficiários da CMU, mas também aos pobres em geral, crianças, idosos e deficientes – é moeda corrente na profissão,
ainda que em geral disfarçada.
Mas, embora os dentistas endossem o primeiro papel nesse sistema de triagem, nem por isso foram
seus criadores. É a nomenclatura dos pagamentos editada pelos poderes públicos que, pondo em
concorrência serviços gratuitos e serviços lucrativos, incita-os a negligenciar os primeiros para melhor se
consagrar aos segundos. “Se você me pede um orçamento bucodentário, serão 23 euros, isto é, uma
ninharia”, explica-nos um profissional aborrecido com sua profissão. “Assim, posso resolver o caso em quinze
minutos ou decidir trabalhar a sério e gastar 45. Se fizer isso várias vezes ao dia, vou acabar na miséria.”
Acabrunhado de trabalho e consciente de sua missão, ele próprio mal consegue pagar suas contas e ganhar
a vida. Ao contrário, um colega menos escrupuloso, que despacha uma limpeza de dentes em dez minutos
cronometrados – quando seriam necessários trinta, no mínimo – ganha confortavelmente a sua. Como resume
nosso interlocutor, “os que cuidam de você de qualquer jeito ou inventam um pretexto para não cuidar são os
mais bem-sucedidos”.
A esse respeito, a reforma chamada de “o resto a custo zero”, em vigor desde janeiro de 2020, não
mudou fundamentalmente o sistema. Se ela permite que o plano de saúde pague integralmente algumas
próteses de baixo custo (e os planos de saúde se aproveitaram disso para aumentar seus preços), deixa
intacta a lógica de negligência e rentabilidade que rege o dispositivo. Sim, existem profissionais heroicos que
não medem esforços para cuidar da melhor maneira possível de quem os procura, com risco de burn-out,
mas não é certo que sejam os mais numerosos entre os 42 mil dentistas instalados na França – dos quais 35
mil são particulares.
Reconhecer o direito de cada um de ter dentes que mordam, tornar público o serviço, pagar aos
dentistas salários que lhes permitam exercer sua arte sem se preocupar com o ganho ou com o financiamento
da piscina de bolinhas em sua segunda residência: o projeto imaginado por Bernard Jeault há meio século
merece sem dúvida uma segunda oportunidade. Por enquanto, a única utopia que parece capaz de abalar o
sacrossanto modelo liberal se mostra ainda mais mercantil que este último. Com efeito, nos termos de uma
lei de desregulamentação adotada em 2009 sob a égide de Roselyne Bachelot, então ministra da Saúde,
clínicas odontológicas de baixo custo foram surgindo às centenas. Dentego, Dentimad, Dentifree, Dentalvie,
Dentymed, Dentasmile. Apesar dos nomes, que evocam um concurso de onomástica publicitária, seriam
“associações sem fins lucrativos”, que não deveriam render nada. Mas as liberalidades proporcionadas pela
lei lhes permitem superar isso.
Disponível em: <https://diplomatique.org.br/os-dentes-dos-pobres/> Acesso em: mar. 2023 [Adaptado]