Atenção: Leia a crônica “A casadeira”, de Carlos Drummond de Andrade, para responder à questão.
1. Testemunhei ontem, na loja de Copacabana, um acontecimento banal e maravilhoso. A senhora sentou-se na banqueta e
cruzou elegantemente as pernas. O vendedor, agachado, calçou-lhe o par de sapatos. Ela se ergueu, ensaiou alguns passos airosos
em frente do espelho, mirou-se, remirou-se, voltou à banqueta. O sapato foi substituído por outro. Seguiu-se na mesma
autocontemplação, e o novo par de sapatos foi experimentado, e nova verificação especular. Isso, infinitas vezes. No semblante do
vendedor, nem cansaço, nem impaciência. Explica-se: a cliente não refugava os sapatos experimentados. Adquiria-os todos. Adquiriu
dozes pares, se bem contei.
2. − Ela está fazendo sua reforma de base? − perguntei a outro vendedor, que sorriu e esclareceu:
3. − A de base e a civil. Vai se casar pela terceira vez.
4. − Coitada... Vocação de viúva.
5. − Não é isso, senhor. Os dois primeiros maridos estão vivos. É casadeira, sabe como é?
6. Não me pareceu que, para casar pela terceira vez, ela tivesse necessidade de tanto calçamento. Oito ou nove pares seriam
talvez para irmãs de pé igual ao seu, que ficaram em casa? Hipótese boba, que formulei e repeli incontinente. Ninguém neste mundo
tem pé igual ao de ninguém, nem sequer ao de si mesmo, quanto mais ao da irmã. Daí avancei para outra hipótese mais plausível.
Aquela senhora, na aparência normal, devia ter pés suplementares, Deus me perdoe, e usava-os dois de cada vez, recolhendo os
demais mediante uma organização anatômica (ou eletrônica) absolutamente inédita. Observei-a com atenção e zelo científico, na
expectativa de movimento menos controlado, que denunciasse o segredo. Nada disso. Até onde se podia perceber, eram apenas
duas pernas, e bem agradáveis, terminando em dois exclusivos pés, de esbelto formato.
7. Assim, a coleção era mesmo para casar − e fiquei conjeturando que o casamento é uma rara coisa, exigindo a todo instante
que a mulher troque de sapato, não se sabe bem para quê − a menos que os vá perdendo no afã de atirá-los sobre o marido, e eles
(não o marido) sumam pela janela do apartamento.
8. A senhora pagou − não em dinheiro ou cheque, mas com um sorriso que mandava receber num lugar bastante acreditado, pois
já reparei que as maiores compras são sempre pagas nele, e aos comerciantes agrada-lhes o sistema. As caixas de sapato adquiridas
foram transportadas para o carro, estacionado em frente à loja. Mentiria se dissesse que eram doze carros monumentais, com doze
motoristas louros, de olhos azuis. Não. Era um carro só, simplesinho, sem motorista, nem precisava dele, pois logo se percebeu sua
natureza de teleguiado. Sem manobra, flechou no espaço e sumiu, levando a noiva e seus doze pares de França, perdão! de sapatos.
Eu preveni que o caso era banal e maravilhoso.
(Adaptado de: ANDRADE, Carlos Drummond de. Cadeira de balanço. São Paulo: Companhia das Letras, 2020)