CONTRA A MERA “TOLERÂNCIA” DAS DIFERENÇAS
Renan Quinalha
“É preciso tolerar a diversidade”. Sempre que me defronto com esse tipo de colocação,
aparentemente progressista e bem-intencionada, fico indignado. Não, não é preciso tolerar.
“Tolerar”, segundo qualquer dicionário, significa algo como “suportar com indulgência”, ou seja,
deixar passar com resignação, ainda que sem consentir expressamente com aquela conduta.
“Tolerar” o que é diferente consiste, antes de qualquer coisa, em atribuir a “quem tolera” um
poder sobre “o que tolera”. Como se este dependesse do consentimento daquele para poder
existir. “Quem tolera” acaba visto, ainda, como generoso e benevolente, por dar uma “permissão”
como se fosse um favor ou um ato de bondade extrema.
Esse tipo de discurso, no fundo, nega o direito à existência autônoma do que é diferente dos
padrões construídos socialmente. Mais: funciona como um expediente do desejo de estigmatizar
o diferente e manter este às margens da cultura hegemônica, que traça a tênue linha divisória
entre o normal e o anormal.
Tolerar não deve ser celebrado e buscado nem como ideal político e tampouco como virtude
individual. Ainda que o argumento liberal enxergue, na tolerância, uma manifestação legítima e
até necessária da igualdade moral básica entre os indivíduos, não é esse o seu sentido
recorrente nos discursos da política.
Com efeito, ainda que a defesa liberal-igualitária da tolerância, diante de discussões
controversas, postule que se trate de um respeito mútuo em um cenário de imparcialidade das
instituições frente a concepções morais mais gerais, isso não pode funcionar em um mundo
marcado por graves desigualdades estruturais.
Marcuse identificava dois tipos de tolerância: a passiva e a ativa. No primeiro caso, a tolerância é
vista como uma resignação e uma omissão diante de uma sociedade marcadamente injusta em
suas diversas dimensões. Por sua vez, no segundo caso, ele trata da tolerância como uma
disposição efetiva de construção de uma sociedade igualitária. Não é este, no entanto, o discurso
mais recorrente da tolerância em nossos tempos.
Assim, quando alguém lhe disser que é preciso “tolerar” a liberdade das mulheres, os direitos das
pessoas LGBT, a busca por melhores condições de vida das pessoas pobres, as reivindicações
por igualdade material das pessoas negras, dentre outros segmentos vulneráveis, simplesmente
não problematize esse discurso.
Admitir a existência do outro não significa aceitá-lo em sua particularidade como integrante da
comunidade política. É preciso, ensina Axel Honneth, valorizar os laços mais profundos de
reciprocidade e respeito pelas diferenças, o que só o reconhecimento, estágio superior da
tolerância, pode ajudar a promover.
Diversidade é um valor em si mesmo e não depende da concordância dos que ocupam posições
de privilégios. Direitos e liberdades não se “toleram”. Devem ser respeitados e promovidos, por
serem conquistas jurídicas e políticas antecedidas de muitas lutas.
O que não se pode tolerar é o discurso aparentemente “benevolente” e “generoso” – mas na
verdade bem perverso – da tolerância das diferenças. Ninguém precisa da licença de ninguém
para existir.
Disponível em: . Acesso em: 12 abr. 2016. [Adaptado]
Glossário
- Axel Honneth (1949): Filósofo e sociólogo alemão, é diretor do Institut für Sozialforschung, da
Universidade de Frankfurt, instituição na qual surgiu a chamada Escola de Frankfurt.
- Herbert Marcuse (1898-1979): Sociólogo e filósofo alemão, naturalizado norte-americano, pertenceu à
Escola de Frankfurt.