A falta que ela me faz
Como bom patrão, resolvi, num momento de insensatez, dar um mês de férias à empregada. No princípio achei até
bom ficar completamente sozinho dentro de casa o dia inteiro. Podia andar para lá e para cá sem encontrar ninguém varrendo
o chão ou espanando os móveis, sair do banheiro apenas de chinelos, trocar de roupa com a porta aberta, falar sozinho
sem passar por maluco.
Na cozinha, enquanto houvesse xícara limpa e não faltassem os ingredientes necessários, preparava eu mesmo o
meu café. Aprendi a apanhar o pão que o padeiro deixava na área – tendo o cuidado de me vestir antes, não fosse a porta
se fechar comigo do lado de fora, como na história do homem nu. Esticar a roupa da cama não era tarefa assim tão complicada:
além do mais, não precisava também ficar uma perfeição, já que à noite voltaria a desarrumá-la. Fazia as refeições na rua,
às vezes filava o jantar de algum amigo e, assim, ia me aguentando, enquanto a empregada não voltasse.
Aos poucos, porém, passei a desejar ardentemente essa volta. O apartamento, ao fim de alguns dias, ganhava um
aspecto lúgubre de navio abandonado. A geladeira começou a fazer gelo por todos os lados – só não tinha água gelada,
pois não me lembrara de encher as garrafas. E agora, ao tentar fazê-lo, verificava que não havia mais água dentro da
talha. Não podia abrir a torneira do filtro, já que não estaria em casa na hora de fechá-la, e com isso acabaria inundando
a cozinha. A um canto do quarto um monte de roupas crescia assustadoramente. A roupa suja lava-se em casa – bem,
mas como? Não sabia sequer o nome da lavanderia onde, pela mão da empregada, tinham ido parar meus ternos, provavelmente para sempre.
E como batiam na porta! O movimento dela lá na cozinha, eu descobria agora, era muito maior do que o meu cá na
frente: vendedores de muamba, passadores de rifa, cobradores de prestação, outras empregadas perguntando por ela.
Um dia surgiu um indivíduo trazendo uma fotografia dela que, segundo me informou, merecera um “tratamento artístico”: fora colorida à mão e colocada num desses medalhões de latão que se veem no cemitério.
– Falta pagar a última prestação – disse o homem.
Paguei o que faltava, que remédio? Sem ao menos ficar sabendo o quanto o pobre já havia pago. E por pouco não
entronizei o retrato na cabeceira de minha cama, como lembrança daquela sem a qual eu simplesmente não sabia viver.
Verdadeiro agravo para a minha solidão era a fina camada de poeira que cobria tudo: não podia mais nem retirar um livro
da estante sem dar logo dois espirros. Os jornais continuavam chegando e já havia jornal velho para todo lado, sem que
eu soubesse como pôr a funcionar o mecanismo que os fazia desaparecer. Descobri também, para meu espanto, que o apartamento não tinha lata de lixo, a toda hora eu tinha de ir lá fora, na área, para jogar na caixa coletora um pedacinho de papel ou
esvaziar um cinzeiro.
Havia outros problemas difíceis de enfrentar. Um dos piores era o do pão: todas as manhãs, enquanto eu dormia, o
padeiro deixava à porta um pão quilométrico, do qual eu comia apenas uma pontinha – e na cozinha já se juntava uma
quantidade de pão que daria para alimentar um exército, não sabia como fazer parar. Nem só de pão vive o homem.
Eu poderia enfrentar tudo, mas estar ensaboado debaixo do chuveiro e ouvir lá na sala o telefonema esperado, sem
que houvesse ninguém para atender, era demais para a minha aflição.
Até que um dia, como uma projeção do estado de sinistro abandono em que me via atirado, comecei a sentir no ar um
vago mau cheiro. Intrigado, olhei as solas dos sapatos, para ver se havia pisado em alguma coisa lá na rua. Depois saí farejando
o ar aqui e ali como um perdigueiro, e acabei sendo conduzido à cozinha, onde ultimamente já não ousava entrar.
No que abri a porta, o mau cheiro me atingiu como uma bofetada. Vinha do fogão, certamente. Aproximei-me, protegendo o nariz com uma das mãos, enquanto me curvava e com a outra abria o forno.
– Oh não! – recuei horrorizado.
Na panela, a carne assada, que a empregada gentilmente deixara preparada para mim antes de partir, se decompunha num asqueroso caldo putrefato, onde pequenas formas brancas se agitavam.
Mudei-me no mesmo dia para um hotel.
(SABINO, Fernando. As Melhores Crônicas de Fernando Sabino. Rio de Janeiro, Record, 1986.)