Enterro televisivo
“Uns olham para a televisão. Outros olham pela televisão.“
(Dito de Sicrano)
1.Estranharam quando, no funeral do avô Sicrano, a viúva Entrelua proclamou:
— Uma televisão!
— Uma televisão o qué, avó?
— Quero que me comprem uma televisão.
5. Aquilo, assim, de rompante, em plenas orações. Dela se esperava mais ajustado desejo, um ensejo solene
de tristeza, um suspiro anunciador do fim. Mas não, ela queria naquele mesmo dia receber um aparelho novo.
— Mas o aparelho que vocês tinham avariou?
— Não. Já não existe.
— Como é isso, então? Foi roubado?
— Não, foi enterrado.
10. — Enterrado?
— Sim, foi junto com o copo do vosso falecido pai.
Tudo havia sido congeminado junto com o coveiro. À televisão, desmontada nas suas quantas peças,
tinha sido embalada no caixão. Era um requisito de quem ficava, selando a vontade de quem estava indo.
Na cerimônia, todos se entreolharam. O pedido era estranho, mas ninguém podia negar. O tio Ricardote
ainda teve a lucidez de inquirir:
— E a antena?
15. Esperassem, fez ela com a mão. Tudo estava arquitetado. O coveiro estava instruído para, após a
cerimônia, colocar a antena sobre a lápide, amarrada na ponta da cruz, em espreitação dos céus. Aquela
mesma antena, feita de tampas de panela, ampliaria as eletrônicas nos sentidos do falecido. O velho Sicrano,
lá em baixo, captaria os canais. É um simples risco a diferença entre a alma e a onda magnética. Por razão
disso, a viúva Entrelua pediu que não cavassem fundo, deixassem o defunto à superfície.
— Para apanhar bem o sinal — explicou a velha.
O Padre Luciano se esforçou por disciplinar a multidão, ele que representava a ordem de uma só voz
divina. Com uns tantos berros E ameaças ele reconduziu a multidão ao silêncio. Mas foi sossego de pouca
dura. Logo, Entrelua espreitou em volta, E foi inquirindo os condoidos presentes:
— E o Bibito? onde está?
— O Bibito? — se interrogaram os familiares.
20. Ninguém conhecia. Foi o bisneto que esclareceu: Bibito era O personagem da novela brasileira. A das
seis, acrescentou ele, feliz por lustrar conhecimento.
— E a Carmenzita que todas as noites nos visita E agora não comparece!
De novo, o bisneto fez luz: mais uma figura de uma telenovela. Só que mexicana. O filho mais velho
tentou apaziguar as visões da avó. Mas qual Bibito, qual Carmen?! Então os filhos de osso e alma estavam ali,
lágrima empenhada, e ela só queria saber de personagem noveleira?
— Sim, mas esses ao menos nos visitam. Porque a vocês nunca mais os vimos.
Esses que os demais teimavam em chamar de personagens, eram esses que adormeciam o casal de
velhotes, noite após noite. Verdade seja escrita que a tarefa se tornava cada vez mais fácil. Bastava um
repassar de cores e sonos para que as pestanas ganhassem peso. Até que era só ligar e já adormeciam.
25. — Quem vai ligar o aparelho hoje?
— É melhor não ser você, marido, porque noutro dia adormeceu de pé.
De novo, o padre invocou a urgência de um silêncio. Que ali havia tanto filho e mais tanto neto e ninguém
conseguia apaziguar a viva? Os filhos descansaram o padre. Que sim, que iam conduzia dali para o resguardo
da casa. Entrelua bem merecia o reparo de uma solidão. E prometeram à velha que não precisava de um outro
aparelho, que eles iriam passar a visitá-la, nunca mais a deixariam só. À avó sorriu, triste. E assim a
conduziram para casa.
Aquela noite, ainda viram a avó Entrelua atravessar o escuro da noite para se sentar sobre a campa de
Sicrano. Deu um jeito na antena como a orientá-la rumo à lua. Depois passou o dedo pelos olhos a roubar uma
lágrima. Passou essa aguinha pela tampa da panela como se repuxasse. De si para si murmurou; é para captar
melhor. Ninguém a escutou, porém, quando se inclinou sobre a terra e disse baixinho:
— Hoje é você a ligar, Sicrano. Você ligue que eu já vou adormecendo.
(Adaptado de: COUTO, Mia. O fio das missangas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008)