Texto para responder a questão
35 anos de ambição democrática
A Constituição brasileira está sob ameaça dos gabinetes, dos porões e da hermenêutica.
Aniversários da Constituição de 1988 costumam ter, entre juristas, um certo tom triunfalista. Mesmo que reconheçam
frustrações, balanços quinquenais raramente deixavam de enfatizar uma linha de progresso no desenvolvimento constitucional
do país. Sua longevidade (a terceira maior da nossa história) seria fruto da virtude da resiliência e do compromisso com o Estado
de Direito.
Essas convicções, se um dia fizeram sentido, estão abaladas neste 5 de outubro de 2023. O senso de retrocesso e de risco
de ruptura cresceram na última década. Até entre juristas pollyanna, que olham para o mundo real e só enxergam avanços, o
cenário já não está tão cor-de-rosa.
Produto da Assembleia Constituinte mais democrática que já tivemos, apesar de um Congresso pouco representativo, o
texto final foi impactado pela participação de movimentos sociais. Para o bem. Houve também concessões às corporações. Para
o mal.
Nessa Constituição heterodoxa e sincrética, um acordo possível acima de partidos, havia mensagem de rechaço ao passado
e olhar de mudança para o futuro. A promessa de valorização da vida, da liberdade, da igualdade e da não discriminação não
foi só retórica e simbólica. O texto previu motores para implementação de direitos. O SUS e o sistema de educação pública,
subfinanciados, foram as maiores conquistas civilizatórias, ao lado da proteção ambiental, de comunidades indígenas e quilombolas.
O PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) segue crescendo. A sociedade que se pretendia “fraterna, pluralista e
sem preconceitos” mata como nunca. Os números de homicídios giram em torno de 50 mil por ano (quase 80% de pessoas
negras). Como em nenhum outro lugar, a polícia continua a matar (quase 7.000 em 2022) e a morrer (161 policiais). Fomos vice-
-campeões em assassinatos de ambientalistas no ano passado. Em assassinatos de jornalistas, fomos melhores que Haiti, México e Ucrânia. Estamos entre os cinco que mais matam mulheres e crianças. Matamos pessoas trans como nenhum país.
A população carcerária cresceu 20% nos últimos cinco anos. É a terceira do mundo em números absolutos e a 14ª per
capita. Prisões têm sido centros de treinamento gratuitos para o crime organizado, que expande seus membros no sistema
político. O STF continua a manter ladrão de shampoo na prisão.
A Constituição de 1988 ainda busca mais operadores que lhe façam justiça. Afinal, não basta um bom texto, bons valores,
boa arquitetura. O constitucionalismo precisa de autoridades que abracem a missão com apuro moral e jurídico. Nossas Casas
parlamentares continuam a ser, em índices de exclusão, comparáveis a países fundamentalistas.
(Conrado Hübner Mendes, professor de direito constitucional da USP, doutor em direito e ciência política e membro do Observatório Pesquisa, Ciência e
Liberdade – SBPC. Folha de São Paulo. Acesso em: 04/10/2023.)