Considere atentamente o trecho a seguir, extraído de uma das crônicas de Paulo Mendes Campos, para responder a questão.
“O homem entra no bar para transcender-se: eis a miserável verdade. Entrei em muitos, bebo alguma coisa desde
a minha adolescência, conheço bares em Porto Alegre, Buenos Aires, São Paulo, Rio, Salvador, Recife, Manaus,
Brasília, João Pessoa, Petrópolis, Belém, Nova Iorque, Lisboa, Vigo, Londres, Roma, Nápoles, Siracusa, Agrigento, Marsala, Palermo, Veneza, Hamburgo, Berlim, Heidelberg, Dusseldorf, Colônia, Munique, Goettingen, Varsóvia, Estocolmo, Leningrado, Moscou, Pequim, Múquiden, Xangai, Santa Luzia e Sabará... Em 1954, viajando pela
Alemanha de carro, cheguei, pouco depois da meia-noite, à cidade universitária do Goettingen. No Brasil, uma
cidade cheia de estudantes costuma tumultuar-se pela madrugada. Mas Goettingen àquela hora entregava-se a
um repouso unânime. Sem sono, reservei um quarto no hotel, perguntando ao empregado onde poderia beber
qualquer coisa. – ‘Ah, senhor’ – respondeu orgulhoso o alemão – ‘Goettingen é uma cidade universitária, não
existe nada aberto a esta hora’. – ‘O senhor está completamente enganado’ – retruquei-lhe. Ele se riu bondosamente de mim: tinha mais de sessenta anos, nascera em Goettingen, conhecia todas as ruas da cidade, todos
os bares, seria humanamente impossível encontrar qualquer venda aberta depois de meia-noite. – ‘O senhor
está completamente enganado’ – insistia eu. Outro alemão que viajava comigo reforçou a opinião do empregado
do hotel, e começou a dissertar impertinentemente sobre as diferenças entre o Brasil e a Alemanha. Eu estava
parecendo bobo – disse ele – não querendo aceitar esta germânica verdade: em Goettingen não havia um único
bar aberto depois de meia-noite. A esta altura manifestei-lhes um princípio universal pelo qual sempre me guiei:
– ‘Pois fiquem vocês sabendo que em todas as cidades, todas as vilas e povoados do mundo, há pelo menos
duas pessoas que continuam a beber depois da meia-noite; aqui em Goettingen há pelo menos duas pessoas que
estão bebendo neste momento; vou encontrá-las’. Meio cético a respeito do meu princípio, mas solidário com o
amigo, resolveu acompanhar-me. Saímos para a noite morta de Goettingen, e fomos andando pelas ruas paralisadas. No fim duma rua comprida e oblíqua, vi um cubo iluminado, mais parecido com um anúncio de barbearia, e
afirmei: ‘É ali’. Ao fim da passagem lateral, por onde entramos, demos com a porta fechada. Batemos em vão, e já
íamos embora, desapontados, quando notei no corredor uma escada circular para o porão, cavada na pedra. No
primeiro patamar, ouvimos música. Tomei um ar superior de vidente e desci o segundo lance. Empurrada a grossa
porta, recebi uma salutar lufada de música, de tabaco, de gente, de aromas etílicos. Foi como se eu reconquistasse o paraíso. O boteco dançava e bebia animadamente, repleto de jovens universitários e lindas universitárias
de bochechas coradas e riso amorável. Não havia uma única mesa vaga, mas três segundos depois eu estava a
beber um magnífico branco do Reno e a explicar para os estudantes, que nos acolheram com simpatia, o princípio
universal que rege a vida noturna. E eles acataram o meu pacífico princípio como um axioma luminoso”. (“Por que
bebemos tanto assim”, de Paulo Mendes Campos, com adaptações).