Seja como for, está claro que a distinção entre o que seria
natural e o que seria cultural não faz o menor sentido para os
aborígenes australianos. Afinal de contas, no mundo deles, tudo é
natural e cultural ao mesmo tempo. Para que se possa falar de
natureza, é preciso que o homem tome distância do meio
ambiente no qual está mergulhado, é preciso que se sinta exterior
e superior ao mundo que o cerca. Ao se extrair do mundo por
meio de um movimento de recuo, ele poderá perceber este mundo
como um todo. Pensando bem, entender o mundo como um todo,
como um conjunto coerente, diferente de nós mesmos e de nossos
semelhantes, é uma ideia muito esquisita. Como diz o grande
poeta português Fernando Pessoa, vemos claramente que há
montanhas, vales, planícies, florestas, árvores, flores e mato,
vemos claramente que há riachos e pedras, mas não vemos que
há um todo ao qual isso tudo pertence, afinal só conhecemos o
mundo por suas partes, jamais como um todo. Mas, a partir do
momento em que nos habituamos a representar a natureza como
um todo, ela se torna, por assim dizer, um grande relógio, do qual
podemos desmontar o mecanismo e cujas peças e engrenagem
podemos aperfeiçoar. Na realidade, essa imagem começou a
ganhar corpo relativamente tarde, a partir do século XVII, na
Europa. Esse movimento, além de tardio na história da
humanidade, só se produziu uma única vez. Para retomar uma
fórmula muito conhecida de Descartes, o homem se fez então
“mestre e senhor da natureza”. Resultou daí um extraordinário
desenvolvimento das ciências e das técnicas, mas também a
exploração desenfreada de uma natureza composta, a partir de
então, de objetos sem ligação com os humanos: plantas, animais,
terras, águas e rochas convertidos em meros recursos que
podemos usar e dos quais podemos tirar proveito. Naquela altura,
a natureza havia perdido sua alma e nada mais nos impedia de
vê-la unicamente como fonte de riqueza.
Philippe Descola. Outras naturezas, outras culturas.
São Paulo: Editora 34, 2016, p.22-23 (com adaptações).