Questões de Concurso
Para tj-rs
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01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
I - A palavra devido (l. 46) está sendo empregada como advérbio.
II - A palavra respeito (l. 46) está sendo empregada como substantivo.
III - A palavra tranquilo (l. 66) pode estar sendo empregada tanto como adjetivo quanto como advérbio.
IV - A palavra troco (l. 101) está sendo empregada como verbo.
Quais estão corretas?
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
( ) A vírgula da última frase do segundo parágrafo é justificada porque separa duas orações em sequência.
( ) As vírgulas da primeira frase do terceiro parágrafo estão empregadas para isolar um elemento intercalado.
( ) O uso de vírgula depois de mole (l. 33) é facultativo.
( ) As vírgulas da última frase do penúltimo parágrafo são empregadas para enumeração de elementos.
A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
I - O pronome que (l. 33), antes de fazem, introduz uma oração adjetiva explicativa.
II - O pronome que (l. 35) introduz uma oração adje- tiva restritiva.
III - O pronome demonstrativo Esta (l. 88) está sendo usado para se referir a dar a nossos filhos os instrumentos para que naveguem, com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo real (l. 88-91).
Quais estão corretas?
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
( ) A oração se eu estava levando um agasalho (l. 03-04) exerce a função sintática de objeto direto.
( ) A oração que, entre os governantes, viceja um grupo de imorais que roubam com criatividade e desfaçatez (l. 36-38) exerce a função sintática de objeto direto.
( ) A oração que nunca chegaria a ponto de incentivá-los a serem escroques (l. 96-97) exerce a função sintática de objeto indireto.
( ) A oração que existe um dilema entre o ensino da ética e o bom exercício da paternidade (l. 104-105) exerce a função sintática de comple- mento nominal.
( ) A oração que sociedades e culturas mudam (l. 114) exerce a função sintática de objeto direto.
A sequência correta de preenchimento dos parênteses, de cima para baixo, é
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Quando eu tinha uns 8 ou 9 anos, saí de casa para
02 a escola numa manhã fria de inverno. Chegando ___
03 portaria, meu pai interfonou, perguntando se eu estava
04 levando um agasalho. Disse que sim. Ele me perguntou
05 qual. “O moletom amarelo”, respondi. Era mentira.
06 Não estava levando agasalho nenhum, mas estava
07 com pressa, não queria me atrasar.
08 Voltei do colégio e fui ao armário procurar o tal
09 moletom. Não estava lá, nem em nenhum lugar da
10 casa, e eu imaginava _ _ _ _. Gelei. À noite, meu pai
11 chegou de cara amarrada. Ao me ver, tirou de sua
12 pasta o moletom e me disse: “Eu não me importo que
13 tu não te agasalhes. Mas, nesta casa, nesta família,
14 ninguém mente. Tá claro?”. Sim, claríssimo. Esse foi
15 apenas um episódio memorável de algo que foi o
16 leitmotiv da minha formação familiar. Meu pai era um
17 obcecado por retidão, palavra, ética, pontualidade,
18 honestidade, código de conduta, escala de valores,
19 menschkeit (firmeza de caráter, decência fundamental,
20 em iídiche) e outros termos que eram repetitiva e
21 exaustivamente martelados na minha cabeça. Deu
22 certo. Quer dizer, não sei. No Brasil atual, eu me sinto
23 deslocado.
24 Até hoje chego pontualmente aos meus compro-
25 missos e, na maioria das vezes, fico esperando por
26 interlocutores que se atrasam e nem se desculpam
27 (quinze minutos parece constituir uma “margem de
28 erro” tolerável). Até hoje acredito quando um prestador
29 de serviço promete entregar o trabalho em uma data,
30 apenas para ficar exasperado pelo seu atraso. Fico
31 revoltado sempre que pego um táxi em uma cidade
32 que não conheço e o motorista tenta me roubar.
33 Detesto os colegas de trabalho que fazem corpo mole,
34 que arranjam um jeitinho de fazer menos que o devido.
35 Isso sem falar nas quase úlceras que me surgem ao
36 ler o noticiário e saber que, entre os governantes,
37 viceja um grupo de imorais que roubam com criativi-
38 dade e desfaçatez.
39 Sócrates, via Platão, defende que o homem que
40 pratica o mal é o mais infeliz e escravizado de todos,
41 pois está em conflito interno, em desarmonia consigo
42 mesmo, perenemente acossado e paralisado por
43 medos, remorsos e apetites incontroláveis, tendo uma
44 existência desprezível, para sempre amarrado ___
45 algo (sua própria consciência!) onisciente que o
46 condena. Com o devido respeito ao filósofo de Atenas,
47 nesse caso acredito que ele foi excessivamente
48 otimista. Hannah Arendt me parece ter chegado mais
49 perto da compreensão da perversidade humana ao
50 notar que esse desconforto interior do “pecador”
51 pressupõe um diálogo interno, de cada pessoa com a
52 sua consciência, que na verdade não ocorre com a
53 frequência desejada por Sócrates. Para aqueles que
54 cometem o mal em uma escala menor e o confrontam,
55 Arendt relembra Kant, que sabia que “o desprezo por
56 si próprio, ou melhor, o medo de ter de desprezar a si
57 próprio, muitas vezes não funcionava, e a sua explicação
58 era que o homem pode mentir para si mesmo”. Todo
59 corrupto ou sonegador tem uma explicação, uma lógica
60 para os seus atos, algo que justifique o _ _ _ _ de uma
61 determinada lei dever se aplicar a todos, sempre, mas
62 não a ele, pelo menos não naquele momento em que
63 está cometendo o seu delito.
64 Cai por terra, assim, um dos poucos consolos das
65 pessoas honestas: “Ah, mas pelo menos eu durmo
66 tranquilo”. Os escroques também! Se eles tivessem
67 dramas de consciência, se travassem um diálogo
68 verdadeiro consigo e seu travesseiro, ou não teriam
69 optado por sua “carreira” ou já teriam se suicidado.
70 Esse diálogo consigo mesmo é fruto do que Freud
71 chamou de superego: seguimos um comportamento
72 moral _ _ _ _ ele nos foi inculcado por nossos pais, e
73 renegá-lo seria correr o risco da perda do amor paterno.
74 Na minha visão, só existem, assim, dois cenários
75 em que é objetivamente melhor ser ético do que não.
76 O primeiro é se você é uma pessoa religiosa e acredita
77 que os pecados deste mundo serão punidos no próximo.
78 Não é o meu caso. O segundo é se você vive em uma
79 sociedade ética em que os desvios de comportamento
80 são punidos pela coletividade, quer na forma de sanções
81 penais, quer na forma de ostracismo social. O que
82 não é o caso do Brasil. Não se sabe se De Gaulle disse
83 ou não a frase, mas ela é verdadeira: o Brasil não é
84 um país sério.
85 Assim é que, criando filhos brasileiros morando no
86 Brasil, estou ___ voltas com um deprimente dilema:
87 acredito que o papel de um pai é preparar o seu filho
88 para a vida. Esta é a nossa responsabilidade: dar a
89 nossos filhos os instrumentos para que naveguem,
90 com segurança e destreza, pelas dificuldades do mundo
91 real. E acredito que a ética e a honestidade são valores
92 axiomáticos. Eis aí o dilema: será que o melhor que
93 poderia fazer para preparar meus filhos para viver no
94 Brasil seria não os aprisionar na cela da consciência,
95 do diálogo consigo mesmos, da preocupação com a
96 integridade? Tenho certeza de que nunca chegaria a
97 ponto de incentivá-los a serem escroques, mas poderia,
98 como pai, simplesmente ser mais omisso quanto a essas
99 questões. Tolerar algumas mentiras, não me importar
100 com atrasos, não insistir para que não colem na escola,
101 não instruir para que devolvam o troco recebido a
102 mais...
103 O fato de pensar ___ respeito do assunto e de viver
104 em um país em que existe um dilema entre o ensino
105 da ética e o bom exercício da paternidade já é causa
106 para tristeza. Em última análise, decidi dar a meus
107 filhos a mesma educação que recebi de meu pai. Não
108 porque ache que eles serão mais felizes assim – pelo
109 contrário –, nem porque acredite que, no fim, o bem
110 compensa. Mas _ _ _ _, em primeiro lugar, não conse-
111 guiria conviver comigo mesmo – e com a memória de
112 meu pai – se criasse meus filhos para serem pessoas
113 do tipo que ele me ensinou a desprezar. Além disso,
114 porque acredito que sociedades e culturas mudam.
115 Muitos dos países hoje desenvolvidos e honestos eram
116 antros de corrupção e sordidez 100 anos atrás. Um
117 dia o Brasil há de seguir o mesmo caminho, e aí a
118 retidão que espero inculcar em meus filhos há de ser
119 uma vantagem (não um fardo). Oxalá.
Adaptado de: Devo educar meus filhos para serem éticos?
http://veja.abril.com.br/noticia/educacao/gustavo-ioschpe-devo-educar-meus-filhos-para-serem-eticos
Acessado em 21/10/2013.
01 Você é a favor ou contra cortarem árvores para.
02 alargar uma rua? A favor ou contra derrubarem uma
03 casa para construir um edifício? Devem ser reabertos
04 os arquivos da ditadura? Proibidas as máscaras nos
05 protestos? Publicadas biografias não autorizadas?
06 A arena de debates públicos foi ampliada virtual-
07 mente ao infinito pela capilaridade das redes sociais.
08 Pode parecer apenas mais uma discussão banal sobre
09 um aumento de 20 centavos nas passagens, mas por
10 _____ de toda polêmica que exalta ânimos e inflama
11 espíritos há um conflito de _____ de mundo, um
12 choque tectônico de ideias. Quase nunca é só pelos 20
13 centavos.
14 Como nem sempre são evidentes todos os aspectos
15 envolvidos em um debate – e como poucas pessoas
16 entendem de todos os assuntos, tirando Leonardo Da
17 Vinci e aquele seu amigo que dá palpite sobre tudo –
18 é comum que fiquemos atentos à maneira como dife-
19 rentes pessoas _____ confiamos se posicionam antes
20 de formarmos a nossa própria opinião. O conceito de
21 formador de opinião, porém, mudou muito nos últimos
22 anos. Hoje há formadores de opinião por todos os lados,
23 para onde você olhar, e por isso mesmo é cada vez
24 mais difícil escolher quem vale a pena ouvir.
25 Na busca da iluminação cotidiana, gosto de prestar
26 atenção em quem entende do riscado: arquitetos para
27 falar de arquitetura, médicos para falar de medicina,
28 juristas para falar de leis. Mas não basta entender do
29 assunto. Para conquistar o meu respeito, é preciso
30 conseguir construir argumentos que voem além dos
31 interesses de sua categoria. Médicos a favor do Mais
32 Médicos, jornalistas contra o diploma de jornalismo,
33 empresários dispostos a perder algum dinheiro: pode-se
34 concordar ou não com eles, mas ganham um crédito
35 adicional de confiança por pensarem com a cabeça e
36 não com o bolso ou o coração.
37 Quero que o formador de opinião seja coerente,
38 mas, se for dizer algo desatinadamente oposto _____
39 disse antes, que reconheça isso, com humildade, porque
40 mudar de opinião, às vezes, é um sinal de inteligência
41 e integridade. Quero ler opiniões _____ me surpreen-
42 dam de vez em quando, porque o pensador indepen-
43 dente não se torna refém de inclinações políticas ou
44 ideológicas – e nada é mais triste do que ver pessoas
45 inteligentes esforçando-se para tornar plausível um
46 pensamento torto apenas para justificar uma ideologia
47 ou um interesse particular. Ainda assim, quero o
48 conforto de saber que certas pessoas têm a capacidade
49 de iluminar os caminhos mais tortuosos, invariavel-
50 mente apontando para a trilha do que é justo, honesto,
51 honrado, coerente.
52 A polêmica recente envolvendo o grupo de artistas.
53 que defende restrições às biografias não autorizadas
54 talvez seja lembrada menos pelo assunto em si do
55 que pelo fato de ter colocado sob fogo cerrado dois
56 dos nomes mais emblemáticos da cultura brasileira.
57 Não me importa que Caetano Veloso e Chico Buarque
58 de Hollanda tenham opiniões diferentes das minhas –
59 muitas vezes tiveram, inclusive politicamente. O que é
60 triste é ver que emprestaram seu prestígio não a um
61 princípio ou a uma causa maior do que eles, mas a
62 interesses restritos ao seu cercadinho. Pois, levado ao
63 limite, o raciocínio da proteção à privacidade torna
64 impossível publicar qualquer coisa que contrarie o
65 interesse de qualquer pessoa – o que, vamos combinar,
66 é muito parecido com censura.
67 O mais irônico é que justamente esse gesto pode
68 vir a ser a nota mais embaraçosa das biografias dos
69 dois – quando, “apesar de você”, elas forem escritas.
70 E serão.
Adaptado de: LAITANO, Cláudia. Zero Hora, 12 out. 2012, n.º 17581.
I - A substituição das expressões nem sempre (l. 14) e todos os (l. 14), respectivamente, por nunca e alguns dos.
II - A substituição das expressões poucas (l. 15) e todos os (l. 16), respectivamente, por todas as e poucos.
III - A substituição da expressão torna impossível publicar (l. 63-64) por impede a publicação de.
Quais resultariam em alteração do sentido literal dos períodos originais?